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Ato secreto dá prejuízo de R$ 33,5 milhões no Tribunal de Justiça

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Decisão administrativa do Tribunal de Justiça (TJ) de Mato Grosso configurada de “ato secreto” gerou prejuízo de R$ 33,5 milhões aos cofres públicos. A medida, jamais divulgada no Diário da Justiça Eletrônico (DJE) ou comunicada via ofício, trata da incorporação de uma lei com efeitos retroativos ao mês de junho de 1998. O procedimento permitiu a uma média de 250 magistrados equiparar salários e outros benefícios da magistratura federal à estadual.

Documentos aos quais A Gazeta teve acesso com exclusividade revelam a falta de critérios para pagamentos de verbas a juízes e desembargadores, comprometendo ainda mais a situação do setor financeiro do Judiciário, alvo de uma recente inspeção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A origem da ilegalidade tem início no dia 8 de setembro de 2003. Naquela ocasião, o juiz Marcelo Souza de Barros, auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça, solicitou, em parecer, a incorporação da lei federal aos magistrados mato-grossenses. O argumento usado foi de que, em seu entendimento, a norma teria validade em território nacional.

“A magistratura é carreira de Estado, estruturada em âmbito nacional, com regramentos fixados na Constituição da República e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) (…) Não há dúvida de que a lei federal nº 10.474 de 27.06.2002, que dispõe sobre a remuneração da magistratura da União projeta efeitos, reflexos e aplicação na magistratura deste Estado”, diz um dos trechos da decisão do juiz.

No dia 11 de setembro, o presidente do Tribunal de Justiça em exercício, desembargador José Ferreira Leite, atualmente aposentado, homologou o parecer e determinou a aplicabilidade dos efeitos retroativos e que não fossem incididos sobre a verba recebida descontos previdenciários ou do imposto de renda. Ainda assim, especificou benefícios a serem pagos reproduzindo um dos argumentos do parecer que decidiu acatá-lo.

“O abono será calculado individualmente e apurado, mês a mês, de junho de 1998 a outubro de 2002, considerando a diferença entre os vencimentos resultantes da lei (federal) e a remuneração mensal efetivamente percebida pelo magistrado, abrangendo o vencimento básico e representação em todo o período; e, sobre o adicional por tempo de serviço, representação pelo exercício do cargo de direção no tribunal e auxílio-moradia, de junho de 1998 até janeiro de 2000, isto em virtude de certidões já expedidas”.

Ao autorizar os pagamentos, o documento assinado por Ferreira Leite solicita que sejam enviadas cópias da decisão para todos magistrados ativos e em exercício, em caráter confidencial, para conhecimento. No entanto, um documento expedido em 3 de maio deste ano pela Coordenadoria de Magistrados garante que três setores administrativos foram consultados para verificar o cumprimento do envio dos ofícios solicitados naquela época, porém, constatou-se que não há nada que comprove o envio de ofícios em caráter confidencial com a finalidade de informar o recebimento de quantias financeiras aos magistrados.

A prática em si fere o artigo 37 da Constituição Federal no qual está previsto que a administração pública deve se pautar pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade de seus atos administrativos diante da necessidade de zelo com o dinheiro público. Ao mesmo tempo, entra em confronto com o Código de Ética da Magistratura Nacional (CEMN), que orienta a Justiça se pautar pela imparcialidade, transparência, dignidade, honra e decoro.

Benefícios a familiares -Quinze dias após a entrada em vigor da incorporação da lei federal, o juiz Marcou Aurélio dos Reis Ferreira Leite, filho do desembargador José Ferreira Leite, recebeu o valor bruto de R$ 90 mil a título de diferença de teto referente ao período de junho de 1998 a outubro de 2002.

No entanto, Marco Aurélio dos Reis Ferreira Leite ingressou na magistratura somente em março de 1999 mediante aprovação em concurso público, o que, em tese, o impediria de receber correção monetária do ano anterior.

Até 10 de novembro de 2003, já havia recebido o valor bruto de 103.158,94 a título de diferença de teto. Ou seja, três meses após a incorporação da lei federal à magistratura estadual.

Já José Ferreira Leite recebeu, somente em abril de 2004, uma sequência de pagamentos que lhe permitiu acumular o valor bruto de 90.052,46. De acordo com documentos internos, não houve emissão de certidão ou atestado para informá-lo do recebimento desta quantia.

Beneficiado – O maior beneficiado financeiramente foi o próprio autor do parecer, juiz Marcelo Souza de Barros, que no período de setembro de 2003 a abril de 2004 acumulou vencimentos de R$ 221.774,21. A maior quantia recebida é referente a diferença de teto, o que correspondeu a R$ 142.422,81. O primeiro pagamento foi recebido 15 dias após a homologação que autorizou a incorporação da lei federal à magistratura estadual atingindo o montante de R$ 90 mil.

De acordo com peritos contábeis, houve diferenças de remuneração decorrentes da equiparação dos salários e benefícios da magistratura federal à estadual que, quando pagas, foram consideradas atrasadas. Observou-se ainda que houve sobreposição de correções monetárias, uma vez que a atualização da lei federal já representava o reajuste de vencimentos. Além disso, a Coordenação de Magistrados calculou e pagou ainda a correção monetária das verbas supondo atrasos no pagamento. Ou seja, os três receberam correção monetária de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) e mais os benefícios da lei federal.

De acordo com especialistas em contabilidade, houve total falta de critérios no pagamento de verbas referentes à atualização da lei que gerou diferença de tratamento com relação aos pagamentos. Em seus entendimentos, a incorporação da lei federal serviu para gerar remunerações extras aos magistrados. Assim, o pagamento seria totalmente indevido porque incidiu em cima de valores reajustados e representou correções monetárias anteriormente reconhecidas e pagas em atraso.

Estimativa de prejuízo – De acordo com documento obtido pela reportagem de A Gazeta, o rombo estipulado para pagamentos indevidos poderia chegar a R$ 60,760 milhões. Durante o período de pouco mais de quatro anos, foi autorizado o pagamento de R$ 4.517.275.16 referentes às diferenças de anuênio; R$ 22.307.744,17 referentes às diferenças de teto e mais R$ 6.723.869,99 de equivalência salarial.

A continuidade dos pagamentos foi interrompida na gestão do desembargador Paulo Lessa (2007-2009), que encomendou uma auditoria em entendimento com o corregedor-geral de Justiça daquela época, desembargador Orlando Perri, para verificar a situação do setor financeiro do Judiciário. Após detectar tal ilegalidade, Lessa determinou à Coordenadoria de Magistrados e Informática que fosse detalhado qualquer direito trabalhista pago aos magistrados.

Somente a partir de maio de 2008 pagamentos feitos por meio de títulos ou qualquer rubrica passaram a ser disponibilizados na Intranet (rede de computadores privada confinada a uma entidade) sendo conferidos por acesso de senhas individuais. Em maio de 2008, a Direção de Pagamentos de Magistrados expediu um documento reconhecendo que, até aquela data, nunca se emitiram demonstrativos de pagamentos ou de qualquer outro detalhamento ao efetuar-se pagamentos extraordinários de créditos que os magistrados tinham por receber.

Irregularidades – Além da decisão de não publicar no Diário da Justiça Eletrônico (DJE) a incorporação da lei federal à magistratura estadual, um conjunto de falhas administrativas permitiu o desconhecimento do recebimento do benefício pela maior parte dos magistrados. É o que apontou o conselheiro Ives Gandra, em relatório apresentado no dia 23 de fevereiro deste ano no Conselho Nacional de Justiça. (CNJ). A sessão culminou numa decisão unânime de aposentar compulsoriamente três desembargadores e sete juízes de Mato Grosso por recebimento indevido de créditos repassados a uma cooperativa de crédito ligada a uma entidade maçônica. Na relação dos magistrados punidos estão Marcelo Souza de Barros, José Ferreira Leite e Marco Aurélio dos Reis Ferreira Leite. De acordo com Gandra, na inspeção que deu origem ao Processo Administrativo Disciplinar (PAD) foram encontradas 11 praxes administrativas consideradas ilegais no âmbito do Judiciário mato-grossense. Estão elencadas a inexistência de comprovante referente a pagamento de folhas suplementares e extraordinária de créditos pendentes a magistrados e servidores; ausência de especificações claras quanto à origem de verbas nas folhas de pagamentos de passivos, tais como a verba apenas intitulada de “Diferença Verba Indenizatória”; pagamento de folhas suplementares (crédito em conta dos beneficiários), antes mesmo de deferido o pagamento nos autos, o que revela falta de controle administrativo.

Na relação ainda consta adoção de índice que mais favorece a correção dos valores a serem pagos aos magistrados em detrimento do índice que melhor reflete a desvalorização da moeda; falta de critério para pagamento de passivos de magistrados; falta de padrão para incidência da contribuição providenciaria e de imposto de renda; omissão de domicílio bancário do favorecido na folha específica. Havia ainda pagamento incorreto e incompleto de passivos de magistrados, por parte da Coordenadoria de Magistrados, mediante atualização de passivos anualmente estipulados pela presidência do Tribunal de Justiça, motivando pagamentos de valores defasados; não aplicação do instituto da prescrição quando do pagamento de verbas pendentes aos servidores e magistrados; aprovação de levantamento de créditos pendentes sem a existência de registros ou memória de cálculos que deem sustentação aos valores apresentados.

O conselheiro ainda condenou, em trecho de seu relatório, a incorporação da lei federal à magistratura mato-grossense. “Salienta-se que o abono variável e provisório da lei foi instituído apenas no âmbito da magistratura federal e teve seu pagamento regulamentado pela resolução STF nº 245 de 12/12/2002. O Supremo Tribunal Federal manifestou-se também, na ação ordinária no sentido de ser indevido o pagamento de atualização monetária sobre o abono pecuniário instituído pela lei nº 10.474/2002”.

O relatório ainda dá classificações à prática administrativa considerada ilegal. “Verifica-se que o requerido (Marcelo de Souza Barros), como um dos mentores do esquema de assalto aos cofres públicos, serviu-se da condição de juiz auxiliar da presidência do TJ-MT, encarregado de definir os magistrados beneficiados com atrasados, para resolver problema pessoal e da instituição privada que integrava, determinando e recebendo pagamentos, em caráter privilegiado, de verbas de atrasados, o que atenta gritantemente contra a dignidade e decoro no exercício da magistratura, por se tratar da coisa pública, como se privada fosse”, complementou.

Contestação – Especialistas em Direito Constitucional contestam o argumento de que uma lei da magistratura federal teria reflexo nos Estados considerando normas da Lei Orgânica da Magistratura (Lomam) e a própria Constituição Federal. “A lei federal trata exclusivamente dos benefícios que deverão ser dados à magistratura da União. Portanto, enquadram-se apenas integrantes do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), Tribunal Regional do Trabalho (TRT), TRF (Tribunal Regional Federal) e juízes de Varas Federais. Jamais poderia ter sido aplicada uma lei que extrapola o alcance estadual. Embora a Constituição entenda que uma lei federal tem abrangência nacional, neste caso, quem paga as despesas da magistratura federal é o tesouro da União ao passo que compete ao tesouro estadual cobrir as locais”, explicou um advogado constitucionalista.

O jurista ainda dá outros exemplos para justificar o que considera prática ilegal. “Nesta linha de raciocínio do parecer, pode-se dizer que um delegado estadual teria que receber os mesmos vencimentos de um delegado federal, e a mesma igualdade prevalecer para deputado federal e estadual, o que não ocorre em obediência às hierarquias. Além disso, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que deve ser indicada a origem da receita para criação de qualquer despesa nos poderes constituídos”. A LRF estipula duodécimo mensal ao Judiciário de 6% da receita líquida do Estado, o que em Mato Grosso corresponde a uma média de R$ 32 milhões.

Para se aplicar no Estado lei semelhante à federal 10474/2002 deveria ser respeitada a exigência constitucional de harmonia dos poderes constituídos, o que na visão de especialistas a decisão do Judiciário mato-grossense burlou. “O Judiciário poderia ter a lei federal como parâmetro, encaminhar uma proposta semelhante à Assembleia Legislativa. Uma eventual aprovação ainda levaria a necessidade de ser sancionada pelo governador do Estado para entrar em vigor após a publicação no Diário Oficial do Estado. O que se percebe neste episódio é que o Judiciário, literalmente, legislou em causa própria”, complementou o advogado.

Normas – De acordo com o artigo 37 da Constituição Federal, nenhum servidor público pode receber mais do que o subsídio de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que corresponde atualmente a R$ 26.723,13. Nos municípios e Estados considera-se como subsídio limite o salário dos prefeitos e governadores, respectivamente. O subsídio dos desembargadores do Tribunal de Justiça é limitado a 90,125% do subsídio mensal, em espécie, dos ministros do STF, limite também aplicável aos membros do Ministério Público, aos procuradores e aos defensores públicos. Quando a União concede aumento aos 11 integrantes da Suprema Corte, ocorre o chamado “efeito cascata”, ou seja, outras categorias do serviço público são contempladas, porém sempre respeitando a capacidade orçamentária dos Estados. Os salários dos ministros do STF e do procurador-geral da República – que correspondem ao teto do serviço público – servem de referência para os demais integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, respectivamente.

Ação civil pública – De acordo com promotor de Defesa do Patrimônio Público, Célio Fúrio, o Ministério Público Estadual (MPE) ofereceu em meados de 2009 ação civil pública contra os desembargadores José Ferreira Leite, José Tadeu Cury e o juiz Marcelo Barros, todos já estão impedidos de atuar na magistratura por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Fúrio afirmou desconhecer o valor do rombo de R$ 33,5 milhões, porém garantiu que a incorporação da lei federal à magistratura estadual motivou o oferecimento da denúncia. “Essa incorporação é de conhecimento da promotoria, porém, com relação aos valores, somente na conclusão da investigação teremos algo concreto”, afirmou. Os autos foram encaminhados à Vara Especializada em Ação Civil Pública e Popular

O Ministério Público acusa José Ferreira Leite, José Tadeu Cury, e o juiz Marcelo de Souza Barros, todos ordenadores de despesa do Tribunal de Justiça entre 2003 e 2005, de desvio de dinheiro público na forma de juros e correções monetárias calculados em excesso e de forma ilegal, pagos com exclusividade a eles próprios. Na época, José Ferreira Leite era presidente do TJ, Tadeu Cury era vice-presidente e Marcelo de Souza Barros era juiz auxiliar da presidência, acusado de ordenar, ao setor competente, os pagamentos indevidos. Na mesma ação, o MP pede a perda da função pública dos magistrados, o que pode levá-los a perda dos vencimentos proporcionais por tempo de serviço, uma das garantias dadas na aposentadoria compulsória que consiste no recebimento do salário integral e outros benefícios, embora estejam impedidos de atuar na magistratura.

Outro lado – Procurado por A Gazeta, o juiz aposentado Marcelo Barros negou que tenha formulado parecer solicitando a incorporação de uma lei federal à magistratura estadual. “Nunca solicitei a implantação para a magistratura estadual dos benefícios da Lei 10.474/2002. O parecer que elaborei no sentido de ser aplicado e estendido para todos os magistrados o benefício que já estava implantado na folha de pagamento desde novembro de 2002. Importante: somente fui designado juiz auxiliar da presidência em março de 2003. Um laudo da Auditoria Geral do Estado constatou esse fato, ao afirmar que o novo teto já estava implantado na folha de pagamento desde novembro/2002, que as disposições da lei, produzem efeitos retroativos a junho de 1998 e que já haviam certidões emitidas para as diferenças dos tetos constitucionais anteriores, a presidência do Tribunal de Justiça, determina a apuração das diferenças para todos os magistrados do Estado de Mato Grosso, no período de junho/1998 a outubro/2002, conforme fundamentação constante da Consulta 004/2003”. Barros ainda destacou que órgãos de fiscalização não indicaram irregularidade alguma no procedimento. “O Tribunal de Contas estudou o assunto e considerou plenamente legal o pagamento das diferenças decorrentes da lei aos magistrados de Mato Grosso, expressando que é legal a percepção de valores pelos magistrados de Mato Grosso em razão da correção e atualização de verbas salariais pagas com atraso, inclusive aquelas decorrentes da aplicação retroativa de diploma legal que fixa novo valor de vencimentos, como é o caso da lei federal.”

O ex-juiz auxiliar ainda contestou a acusação de peritos contábeis de que a equiparação dos salários serviu apenas para acumular despesas extras. “Se existe suspeita, é totalmente despida de fundamento, já que o novo teto foi aplicado em novembro de 2002, quando eu não era juiz auxiliar da presidência e como a Lei 10.474/2002 produziu efeitos retroativos a 1998 as diferenças – que até aquele momento beneficiavam apenas alguns – foram calculadas e corrigidas para todos os magistrados que são ativos, inativos e pensionistas. Até o dia 04.08.2008 duzentos e quarenta e dois magistrados já tinham recebido valores relativos à “Diferença de Teto da Lei 10.474/2002″, cujo montante de pagamento superava R$ R$ 14 milhões”, afirmou.

Procurado pela reportagem, o desembargador aposentado José Ferreira Leite informou que estava fora de Cuiabá e preferia se pronunciar a respeito somente após ter conhecimento das acusações. Ele se comprometeu em atender a reportagem nesta segunda-feira para prestar esclarecimentos. “Não vou ter problema algum de atender vocês”, assegurou.

 

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