O comparativo se refere ao número de homicídios ocorridos neste ano em relação a 2013. Enquanto no ano passado foram investigados três crimes onde a autoria recaia sobre agentes de segurança pública, até o dia 30 de novembro já são 19 vítimas mortas pela ação de PMs, 11 na Capital e oito em Várzea Grande.
Em 14 dos 19 casos, é alegada resistência à prisão por parte da vítima para a realização de disparos que levaram ao óbito. Apenas um caso é de legítima defesa, enquanto os demais estão sob apuração. Esses são os dados oficiais e não contabilizam as mortes onde há indícios de participação de policiais, como na chacina do bairro São Mateus, em fevereiro deste ano, quando cinco pessoas foram executadas. Nesta semana, outros quatro assassinatos registrados em Várzea Grande seriam em retaliação à morte de um Cabo PM.
O maior obstáculo para a investigação destes crimes tem sido a própria Polícia Militar, argumenta o delegado Silas Tadeu Caldeiras, titular da Delegacia Especializada em Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Segundo ele, nos casos de crimes de militares praticados contra civis, a responsabilidade da investigação é da Polícia Judiciária Civil. Mas, recentemente, os comandos das unidades vem descumprindo ordens
judiciais e os autores não se apresentam à Polícia Civil, bem como não entregam as armas utilizadas nos crimes para realização de perícia.
A alegação para o descumprimento de determinação judicial anterior é a existência do parecer de uma procuradora de Justiça do Estado, que sugere que a investigação dos crimes praticados por militares deve ser feita pela própria corporação, através de um Inquérito Policial Militar (IPM). Comandante geral da PM no Estado, coronel PM Nerci Adriano Denardi, reforça que existe determinação legal para que os homicídios praticados por PMs em serviço sejam investigados pela corporação, por meio do IPM. Quanto ao número de homicídios de PMs em serviço, este ano, ainda não tem em mãos, mas lamenta que chamem mais a atenção do que os casos em que os policiais são mortos em confronto com criminosos. Também não soube informar o número de mortes que ocorreram nestas circunstâncias.
Quanto aos indícios de participação de policiais militares em execuções de civis em Várzea Grande, como represália à morte de colegas, assegura que são comentários maldosos. Lembra que nestes crimes a investigação cabe à Policia Civil desvendar a autoria. Nega que exista qualquer forma de incentivo da corporação ou de determinados comandos na participação de policiais ou ex-policiais nas ações destes grupos.
Se a PM dificulta o trabalho da Polícia Civil, em relação à materialidade dos crimes praticados enquanto estão em serviço, a DHPP também caminha a passos lentos na obtenção de provas em relação a crimes onde existem fortes indícios de vingança, praticados por membros da corporação ou ex-policiais a mortes anteriores que envolveram colegas. No caso da chacina do São Mateus, onde encapuzados renderam frequentadores de um bar e atiraram contra o grupo pelas costas, ferindo oito pessoas, das quais cinco morreram, a ação ocorreu na mesma semana em que o major PM Claudemir Gasparetto foi morto durante um assalto, em Várzea Grande, lembra o titular da DHPP.
Esta semana, foram mais quatro execuções de jovens no município, com a atuação de quatro encapuzados em um dos casos. Ocorreram dois dias depois que o cabo da PM Marco Antônio da Silva, 45, morreu ao reagir a um assalto, quando não estava em serviço. O delegado admite que não existem provas ainda, mas denúncias apontam que os crimes são uma represália, com o objetivo de intimidar a população e supostamente reduzir a criminalidade.
A banalidade e a frequência dos homicídios no município preocupam cada vez mais a Polícia Civil, por isso a urgência em chegar aos autores para dar uma resposta à população e conter a onda de violência, assegura Silas.
Na opinião do promotor Mauro Poderoso, que há dois anos atua no Tribunal do Júri da Comarca de Várzea Grande, investigações de policiais por policiais sempre estarão sob suspeita, graças ao sentimento corporativista da classe. Ele, que já atuou em mais de 200 julgamentos, lembra que em casos de crimes praticados por policiais a investigação é sempre mais complexa. “Eles são treinados para matar. Não deixam suas digitais na testa da vítima”.
Salienta que em crimes onde existem indícios de participação de agentes da lei, os autores normalmente escolhem os locais do ataque, longe de testemunhas e buscam encobrir ou destruir provas. Cita que de 100 homicídios ocorridos no Brasil, cerca de 10% têm investigação conclusiva para a autoria e a condenação dos réus ainda vem em menor proporção. Um dos motivos, segundo ele, é a demora na conclusão das fases do processo, desde o inquérito policial, denúncia e preparação para o julgamento, que leva anos e só beneficia os acusados. Quando levados à júri popular, acabam inocentados, ou pela falta de provas materiais ou mesmo pela inexperiência dos jurados.
Lembra que o formato dos julgamentos hoje é o mesmo que vigorava há 50 anos. “Enquanto o juiz, o promotor e o defensor recebem R$ 30 mil pelo trabalho, o jurado fica à disposição da Justiça, afastado do trabalho, sem receber nada e sem qualquer apoio do Estado”. De acordo com o promotor, em muitos casos, após sorteio, imploram pela liberação quando escolhidos.
Nos tribunais não existe preocupação nenhuma em garantir o anonimato ou manter o júri longe da visão do réu, que quando se trata de um policial ou ex-policial, naturalmente vai exercer uma intimidação sobre o corpo de jurados.
Outro problema, admite Poderoso, é a inexperiência das pessoas, até a falta de conhecimento dos membros do júri sobre aspectos técnicos de uma investigação policial ou mesmo em relação às provas apresentadas. Lembra que para a Justiça um indício de crime tem o mesmo valor de uma prova testemunhal ou de uma prova material. Mas o júri, na maioria das vezes, inocenta o acusado do crime pela falta de uma prova material consistente, ignorando todos os indícios da prática criminosa.
As falhas na investigação, que na sua opinião desde o início deveriam ser acompanhadas pelo Ministério Público, a demora em se levar os réus a julgamento e a falta de modernização nos tribunais com uso de tecnologias de apoio, como fotos, gráficos, slides, anonimato do júri, entre outros, tornam cada vez mais difícil a condenação de criminosos. Se torna um processo desgastante, sem o resultado esperado.
Filho de coronel PM do Estado de São Paulo, Mauro Poderoso reconhece que, infelizmente, em nosso país existe uma corrente cultural de justiça em que a máxima “bandido bom é bandido morto” beneficia o criminoso quando a vítima possui antecedentes criminais, independente da motivação do assassinato.
A Polícia brasileira mata pelo menos 10 vezes mais em serviço do que a americana, europeia, canadense ou de países em condições de desenvolvimento semelhante. A afirmação é do sociólogo Naldson Ramos, coordenador do Núcleo Interistitucional de Estudos da Violência e Cidadania, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Uma das causas, segundo ele, é que a arma de fogo é usada pelas outras polícias como último recurso para se imobilizar ou conter um suspeito.
No Brasil, o disparo é a primeiro ato do agente e estudos mostram que os tiros sempre atingem as vítimas em órgãos vitais (cabeça, tórax e abdome), não em braços e pernas, como ocorreria caso a intenção fosse apenas neutralizar o alvo da ação policial.
Além disso, muitos policiais incorporam em seu trabalho o conceito do “bandido bom é bandido morto” e tomam para si o senso de Justiça. Tal conceito de que violência deve ser combatida com mais violência é reforçado por setores da imprensa e ganha apoio popular, lamenta Naldson.
O sociólogo salienta ainda que muitos crimes praticados por policiais ou mesmo em que são vítimas, ocorrem quando estão fora de serviço. Quando aproveitam as escalas de folgas de até 72 horas para atuar em “bicos” como seguranças. Nestas situações, muitas vezes, são alvos de criminosos, já que apesar de portarem armas de fogo não contam com o apoio de outros colegas e demais equipamentos, incluindo coletes de proteção. Naldson lembra que grande parte das mortes ocorre nestas circunstâncias e que acaba movendo outros policiais a uma reação de vingança, por uma suposta “sede de Justiça”.
Lamenta que ações de “justiceiros” como estas são de difícil investigação e acabam se repetindo
muitas vezes por uma falta de punição efetiva destes criminosos. A truculência e violência durante a abordagem de policiais nas ruas é uma das denúncias mais frequentes recebidas pela Ouvidoria da Polícia em Mato Grosso. O setor esta sob o comando do pastor Teobaldo Witter e este ano já registrou cerca de 11 mil atendimentos, entre denúncias, elogios, reclamações, entre outros.
Teobaldo acredita que o número pode ser ainda maior, caso o cidadão tenha consciência de seus direitos. Ressalta que todas as denúncias feitas por telefone, e-mail e pessoalmente são acompanhadas pela Ouvidoria, em todas as instâncias, inclusive em inquéritos policiais e junto aos comandos de unidades policiais. O denunciante pode ter a tranquilidade de que não correrá riscos, pois terá a identidade preservada. A ouvidoria é subordinada ao Conselho Estadual de Direitos Humanos.
Acredita que a violência que se vê na ação policial ainda é fruto de um modelo arcaico de segurança pública, sob o lema “Vigiar e punir”. Esta visão precisa ser mudada, assegura o ouvidor, e envolve um conceito geral de melhoria na qualidade de vida, com menos estresse. A partir deste conceito, os conflitos devem ser resolvidos com diálogo entre as partes envolvidas.