Logo nas primeiras semanas de isolamento social, imposto pela pandemia do Novo Coronavírus, constatou-se, em todos os quadrantes do planeta, um aumento expressivo da violência familiar contra as mulheres. Estudos apontam que a elevação dos índices de violência decorreu do aumento da tensão no ambiente doméstico causado pela angústia e mal-estar que, naturalmente, afloram da situação de isolamento, pelas dificuldades econômicas, desemprego, consumo excessivo de bebidas alcoólicas, dentre outros fatores.
A situação se revela bem mais preocupante na medida em que, confinadas em casa, as mulheres se tornam “presas fáceis” para os seus agressores e por estarem também, constantemente, sendo por eles “vigiadas”, ficam impedidas de buscar socorro. Bem por isso, aliás, é que estudiosos dessa macabra realidade que permeia nossa sociedade vêm indicando iniciativas, excepcionais, próprias para serem adotadas nestes tempos de confinamento, visando a proteger as mulheres agredidas ou que se encontram em estado de risco.
Esse quadro, inteiramente revoltante, que exterioriza, o quanto mais, uma conhecida e repugnante cultura machista e opressora contra as mulheres, obriga-nos, por outro lado, a novas reflexões.
Com efeito, é de ver que, a par de todos os fatores apontados logo acima, é a convivência diária e em tempo integral no mesmo espaço familiar que, pelo que se nota, proporciona o ambiente propício para a eclosão da violência. Significa dizer, então, que se ao invés do isolamento social tivéssemos, a qualquer tempo, com ou sem pandemia, uma espécie de “isolamento conjugal regrado”, pelo qual os casais somente se encontrassem para o descanso noturno, os índices de violência doméstica contra as mulheres seriam bem menores.
Essa realidade descortina, à vista de todos, um cenário de extrema fragilidade nas relações afetivas que, de tão débeis, não suportam o que nelas deveria ser o mais elementar; a convivência, o trato diário, o companheirismo e a intimidade. Para ser mais agudo, pode-se dizer que tudo isso mostra, a rigor, a ausência de amor, sentimento sublime e fundamental, nessas relações afetivas.
Em recente debate num encontro virtual realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – DF, apresentei esse meu ponto de vista acerca do assunto e, logo de pronto, uma psicóloga que também participava da discussão sugeriu que esse estado de coisa materializa aquilo que Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, chamava de “amor líquido” caracterizado, justamente pela fragilidade e fluidez dos laços humanos, inclusive, aqueles de natureza afetiva e familiar.
De fato, é bem provável que estamos a viver na “Modernidade Líquida”, conceito muito bem elaborado por Bauman, e, nesse contexto, recebemos todos os influxos dela advindos. Assim, em conformidade com o pensamento do sociólogo polonês, devemos admitir que nos tempos atuais, em vista de uma série de fatores sociais, econômicos, tecnológicos, dentre outros, as relações afetivas são, em regra, instáveis, de pouca duração, com laços não muito apertados de compromisso e que, porquanto, tendem a se desfazerem em pouco tempo. Aliás, Bauman entendia que o homem moderno convive com certo conflito, qual seja: de um lado o medo da solidão, que o leva a buscar a companhia de outro (a); e, no lado oposto, o desejo de liberdade plena para gozar de todas as oportunidades da vida contemporânea, o que lhe faz afastar da ideia de relacionamentos estáveis que possam criar vínculos fortes, inflexíveis, duradouros.
Mas, se o “amor líquido”, a despeito do que podem pensar os mais conservadores, é mesmo uma realidade social, mostra-se absolutamente necessário que os casais, mais do que nunca, saibam dimensionar o tempo da sua “validade”. É imperioso que avaliem, permanentemente, até quando a relação “vale a pena” e quando chega o tempo de se ganhar a “liberdade” que, intimamente, possa estar pedindo passagem.
Assim, nessa linha intelectiva, se mostraria bastante eficaz, na tentativa de se evitar, o quanto mais, a violência doméstica familiar, se tivéssemos campanhas educativas, debates, colóquios, reuniões, etc., nos quais se enfocasse não apenas formas pelas quais as mulheres devem se defender das agressões dos seus companheiros, mas, antes disso, que se problematizassem, sem peias ou meias verdades, a validade das relações afetivas, o quanto e como elas podem influenciar no bem-estar e na felicidade das pessoas. Isso poderia estimular a todos (homens e mulheres) avaliar, refletidamente, se vale a pena prosseguir nesta ou naquela relação e, desse modo, sendo o caso, livrar-se de relacionamentos angustiantes, opressores, falidos de amor, os quais passam a ser campos férteis para a violência.