“Eu sou ninguém. E você?/ É ninguém também?/ Tornamo-nos par, hein? Segredo/ Ou mandam-nos pro degredo/ Que enfadonho ser alguém!” Emily Dickinson, Uma centena de poemas"
Quem são os donos da Amazônia? Não se sabe ao certo. Quem possui determinada área e onde? Não se sabe ao certo também. Em regra, não se sabe quem são os proprietários de terras amazônicas, e não existe um controle efetivo sobre as dimensões das terras. Isso estimula o desmatamento ilegal, a violência, e a grilagem de terras amazônicas por dificultar a responsabilização dos infratores.
A tentativa de regularizar as terras no Brasil é antiga, tendo se iniciado no século XIX. Com a Lei nº. 601 (Lei de Terras) de 1850, proprietários e possuidores de terras deveriam cadastrar as suas propriedades ou posses junto aos vigários das paróquias. Uma mera declaração bastava, ou seja, documentos ou a medição da área não eram necessários. Mesmo sem converter posse em propriedade, essa primeira iniciativa governamental mostra a falta de controle histórico sobre as terras brasileiras.
Primeiro, pelo improviso. Uma atividade profissional é delegada aos párocos das Igrejas locais, cuja prioridade certamente não era a regularização fundiária. Segundo, pela histórica confusão público-privado. Terceiro, pelo resultado. O caráter declaratório do cadastro não resolvia conflitos existentes e possibilitava, como ocorreu, o surgimento de mais conflitos e fraudes.
Nova iniciativa de resolver o problema fundiário brasileiro ocorreu com o Estatuto da Terra. Aí as exigências documentais foram maiores. Mas, para a Amazônia, cuja colonização ocorreu nos anos 70, a lei foi insuficiente para o problema em formação.
Novas iniciativas desenvolvidas nos anos de 1997, 1999, 2001 e 2004 apresentaram melhores resultados, por exemplo, a recuperação de 20 milhões de hectares de terras públicas. Os resultados, porém, são insuficientes, seja pela quantidade de processos arquivados sem resolução, seja pela demora na efetiva regularização fundiária.
Na área estadual, a situação é similar. Embora estados amazônicos tenham desenvolvido sistemas de monitoramento e licenciamento ambiental de propriedades rurais, o que requer o cadastramento das propriedades rurais em tais sistemas, nem sempre se consegue um alto índice de adesão ao sistema.
O Estado de Mato Grosso, por exemplo, tem um sistema, o SIMLAM, amplamente considerado como modelo para sistematizar o registro de propriedades rurais e licenciamento do uso da terra. Até 2011, apenas 30% das áreas das propriedades privadas rurais estavam registradas no SIMLAM, estimulando (nas propriedades não cadastradas) novos desmatamentos ilegais, a emissão de gases de efeito estufa além da impunidade.
Uma verdade: a falta de um registro de propriedades e posses na Amazônia estimula a “grilagem de terras”. O termo grilagem de terras vem do grilo, um inseto, que era colocado entre documentos falsos de terras para produzir o envelhecimento do título de propriedade. Algumas características desses títulos fraudados são: a) a apropriação usual de terras públicas por particulares; b) a utilização de violência na apropriação dessas terras, sobretudo, contra posseiros, ribeirinhos e outros membros de comunidades tradicionais.
A grilagem agrava ainda mais a deficiente regularização fundiária amazônica, pois cria novas situações de fato que carecerão de resolução jurídica. Ou seja, novos problemas são criados, alimentando permanentemente o problema da regularização fundiária amazônica.
Como punir os desmatadores se o Estado não sabe quem são os proprietários (responsáveis) pela área? Como controlar e punir se o Estado nem mesmo sabe a extensão e os limites das terras públicas?
Ser alguém na Amazônia pode causar um tipo de enfado positivo, aquele em que alguém não se esconde atrás do anonimato, assumindo suas responsabilidades para com a sua comunidade, o seu Estado, o seu país.
*Artigo 5 da série de artigos Desenvolvimento Sustentável da Amazônia.
Rinaldo Segundo, promotor de justiça no MPE/MT e mestre em direito (Harvard Law School), é autor do livro “Desenvolvimento Sustentável da Amazônia: menos desmatamento, desperdício e pobreza, mais preservação, alimentos e riqueza,” Juruá Editora.