"Sou negro, ainda que me queiras moreno", escreveu o poeta João Negrão, que nas horas vagas é nosso colega de imprensa. Adotei sua sentença desde que a conheci, há algumas décadas. Declaro-me negro. Assumo-me negro. Gosto-me negro. Mas, isso, convenhamos, é uma opção minha. Muitos negros – mais escuros ou mais claros que eu – preferem ser chamados de morenos. Já outros nem gostam de discutir sua melanina. Preferem ser chamados pelo nome ou outro apelido que não tenha qualquer conotação com raça. Opção deles. (Há quem discuta se isso é alienação ou coisa que o valha. Não discuto isso mais).
Particularmente em Cuiabá, onde a cultura popular tratou de criar o hábito de as pessoas tratarem-se por apelidos, muita gente é conhecida por alguma característica física, inclusive a cor da pele. Além disso, o povo cuiabano é a mistura de tantas raças, com predominância de negros e índios, de bugres. Devido ao grande fluxo migratório centro-sulista das últimas três décadas, o povo do olho azul se misturou aos pretos, índios e bugres. Temos hoje uma miscigenação muito forte, que nos leva a pensar se realmente ainda temos muitas pessoas de raça pura por essas bandas. Somos, a rigor, todos mestiços. Logo, a identidade racial de cada um acaba mesmo sendo uma opção mais ideológica que antropológica. Não é uma determinação biológica (muita gente também discute se biologicamente há mesmo raças entre humanos ou se somos todos apenas humanos. Isso também não discuto mais, por preguiça mental).
Esse enorme nariz de cera foi feito intencionalmente para dizer que, no meu ponto de vista – de negro assumido – o deputado federal Júlio Campos (DEM), cuiabano absolutamente identificado com esse traço cultural relatado acima – como bem o disse o também colega jornalista Jorge Moreno – não intencionou ofender o ministro Joaquim Benedito Barbosa, ao referir-se a ele, num ambiente restrito de um encontro partidário, como "Moreno Escuro".
O próprio Júlio, pelo que lemos na imprensa, declarou que não o fez com intenção pejorativa nem discriminatória, mas sim pelo fato de ter-se esquecido do seu nome ao se referir ao ministro. Acredito no Júlio, neste caso.
Claro que se Júlio Campos tivesse lido os poemas do João Negrão (Negrão é apelido adotado), não cometeria a gafe. Poderia ter chamado o ministro Joaquim Benedito Barbosa de "Negro Escuro". Ou de "Pretão", como a colega jornalista Sônia Zaramella chama seu amado marido José Luiz (que, a propósito, é caucasiano, branco reluzente, e careca).
O ministro se chama Joaquim Benedito Barbosa Gomes. Foi anunciado como o primeiro negro a compor o Supremo Tribunal Federal, corte máxima do nosso judiciário. Benedito, a propósito, é nome de santo. E santo preto. O que pode revelar que sua família, ao batizá-lo, quis, ainda que de forma não totalmente consciente, associá-lo ao santo da raça. Sendo isso verdade, Joaquim Barbosa pode, como eu, João Negrão e Jorge Moreno, ler-se preto. Gostar-se preto. Mas, isso também é opção dele.
Aproveito a situação para sugerir a Júlio Campos que proponha ao Ministério da Saúde a alteração de um documento de preenchimento obrigatório em todos os hospitais brasileiros para identificação dos recém-nascidos. Chama-se "Declaração de Nascido Vivo". É com esse documento que os pais vão ao cartório registrar seus filhos. Nele, curiosamente, há cinco opções para a declaração da raça do bebê: branco, preto, pardo, indígena e amarelo. Não há opção de moreno escuro nem mestiço, tampouco negro. Talvez fosse o caso de deixar aos próprios pais a definição da cor de seus filhos até que esses tenham condição de escolher o que querem ser.
Kleber Lima é jornalista e consultor de marketing em Mato Grosso