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Privilegiar para quê?

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O Poder Judiciário brasileiro, desde a primeira constituição republicana, é organizado sob forte influência do sistema americano, de modo que não há hierarquia entre as várias instâncias que o compõem. Como regra, cabe aos juizes de primeira instância instruir e julgar as ações criminais e cíveis. Os tribunais de justiça, regionais federais e superiores, em grau de recurso, fazem o reexame do que foi decidido pelos juízes. A despeito da arquitetura piramidal do Poder Judiciário, o juiz de primeiro grau é tão independente quanto um ministro do Supremo Tribunal Federal, e entre eles não há hierarquia.

Excepcionalmente, tendo em consideração o cargo ou mandato ocupado pela pessoa, é cometida aos tribunais a competência originária, e não recursal, para processar e julgar processos criminais, habeas corpus e os mandados de segurança. Essa é uma função anômala e excepcional dos tribunais, e assim deve ser tratada, até porque eles não têm o perfil ou as características para cumprir a função que é própria da magistratura de base.

Por isso mesmo, é da tradição do nosso sistema constitucional fixar, de forma expressa e exaustiva, a competência originária dos tribunais para processar e julgar os feitos, pois, não se pode negar, a chamada prerrogativa de foro, como advertiu o ministro Sidney Sanches, de certa forma, confere um privilégio (STF, INQ 687/SP).

Equívoco histórico, o foro por prerrogativa de função, além de estabelecer, por linhas transversas, hierarquia entre os órgãos jurisdicionais, tem se mostrado ineficiente. Os tribunais apresentam dificuldades estruturais e operacionais para instruir processos de sua competência originária, o que gera a morosidade e a conseqüente sensação de impunidade, até porque, não raro, ocorre a prescrição. Aliás, não há registro de que qualquer tribunal brasileiro, no exercício de sua competência por prerrogativa de função, tenha condenado um político.

Concebido, em certa medida, como privilégio, o foro especial, tratado como exceção, geralmente se aplica apenas às ações criminais, uma vez que são esses os casos que podem resultar na restrição do direito de liberdade da pessoa. Como exceção da exceção, e, ainda assim, apenas para os casos de mandado de segurança e de injunção, o constituinte de 1988 previu a prerrogativa de função para as questões cíveis.

Todavia, aqui e ali se vê a tentativa de estender o foro privilegiado. No passado, a Súmula 394 do STF assegurava, mesmo a quem não mais exercia o cargo ou mandato, prerrogativa de somente ser processado por tribunal. Em decisão histórica de 2001, o STF, ao argumento de que a prerrogativa de função somente se justificaria se fosse para resguardar o exercício do cargo, nunca o interesse pessoal do seu ocupante, entendeu que não se harmoniza com o princípio da igualdade estender a prerrogativa de foro para ex-autoridades, porque, nesse caso, ao invés de cuidar da função, a norma estaria dando amparo a quem deixou de exercê-la (INQ 687/SP).

Em reação, o Parlamento brasileiro editou a Lei 10.628/2002, que, além de estabelecer a prerrogativa de função para ex-autoridades, ampliou essa exceção para as ações de improbidade administrativa. Na Ação Direta de Inscontitucionalidade 2797/DF, o ministro Sepúlveda Pertence, após realçar que a referida lei era uma evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394, entendeu pela sua inconstitucionalidade, no que foi acompanhado, à unanimidade, pelos demais pares.

Devido à proliferação, na primeira instância, de ações de improbidade contra diversas autoridades, muitas delas julgadas procedentes com a conseqüente determinação da perda dos direitos políticos e da função pública, foi ajuizada no STF, dentre outras, a Reclamação 2138, com a qual se pretende afastar a possibilidade de aplicar aos agentes políticos as regras previstas na Lei de Improbidade. Iniciada a votação, quando tudo parecia caminhar para esse entendimento, depois de intensa mobilização de várias entidades de classe, aí despontando AJUFE, AMB, ANAMATRA, ANPR, CONAMP e ANPT, o assunto tomou outro rumo. Muito provavelmente, a tese não será acolhida pelo STF.

Agora, a preocupação se renova e com ela a necessidade de nova mobilização da sociedade. Embutiu-se, dentro da Proposta de Emenda Constitucional 358/2005, que trata da segunda etapa da Reforma do Judiciário, pronta para ser votada no plenário da Câmara dos Deputados, o art. 97-A, caput e parágrafo único, que tenta, uma vez mais, estender o foro privilegiado para ex-autoridades e para a ação de improbidade administrativa.

Na medida em que se alarga a prerrogativa de função para quem não mais a exerce, evidencia-se que a intenção não é resguardar o exercício funcional, mas proteger a pessoa que deixou o governo. À luz da Constituição, por força da cláusula da isonomia, é inaceitável, em qualquer hipótese, que a incidência da prerrogativa de função seja prolongada com relação a quem já não é mais titular da função pública que a determina.

Por outro lado, merece objeção a iniciativa parlamentar de estender a prerrogativa de função para os casos de improbidade administrativa, que tem sido instrumento de combate eficiente à má-gestão pública, com punições exemplares de perda de cargo, dos direitos políticos e de condenação em ressarcimento aos cofres públicos de quem se serve do cargo para satisfazer os seus interesses pessoais.

Se se quer maior rapidez e eficiência no combate à criminalidade e no controle da administração pública, é imperioso que a Câmara dos Deputados, na esteira da jurisprudência do STF, rejeite a proposta de extensão da prerrogativa de função para ex-autoridades e às ações de improbidade administrativa.

Walter Nunes da Silva Junior, 43, juiz federal, doutor em teoria constitucional do processo penal e professor de direito penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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