O Superior Tribunal de Justiça negou, no último dia 16, o pedido de um advogado para interromper o monitoramento de seu telefone celular, instituído pelo Estado de São Paulo como meio de controle do isolamento social em razão da pandemia do Coronavírus. Alegava-se no habeas corpus violação ao direito fundamental à liberdade de locomoção e à privacidade do paciente, na medida em que a implementação do sistema permitiria ao estado o compartilhamento de informações obtidas pelas empresas de telefonia a partir da localização de aparelhos de celular, com a possibilidade de acesso aos dados individuais dos usuários.
A Corte entendeu que, segundo as informações prestadas pelo governo e as operadoras, “o Sistema de Monitoramento Inteligente (Simi), utilizado pelo Governo do Estado, para observação do deslocamento de pessoas durante a pandemia do novo coronavírus (COVID-19), não permite a individualização dos dados dos usuários”, e que o impetrante não apontou “atos objetivos que possam causar, direta ou indiretamente, perigo ou restrição à liberdade de locomoção no caso – o que inviabiliza, por si só, o manejo do remédio heroico”.
Assim, para a Ministra relatora, “o advogado não esclareceu de que maneira o Simi poderia influenciar diretamente na liberdade de locomoção dos habitantes de São Paulo”. A Magistrada mencionou, ainda, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (ADPF 672) em que se reconheceu a competência dos chefes de Executivo estaduais para adotar medidas como a imposição de distanciamento social e restrição de circulação de pessoas.
Referida decisão assentou, por fim, não ser o Habeas Corpus o instrumento hábil para solver a questão, ante a controvérsia acerca da potencial lesão ao direito de ir e vir. A relevância do tema suscita, no entanto, maior reflexão sobre a possibilidade desse tipo de monitoramento vulnerar outras vertentes do direito à privacidade.
Não se deve ignorar que medidas restritivas encontram fácil adesão popular em momentos de crises. O medo oculto na narrativa política funciona como elemento automático do consentimento tácito, desde que pequenos incômodos experimentados pela população sirvam para prevenir o terrível mal intensamente repetido nos meios de comunicação.
É assim que no processo de erosão gradativa de direitos e liberdades fundamentais o excepcional tende a “normalizar-se”, e muitas ações políticas acabam legitimadas em função dos resultados alcançados/declarados, não pela submissão dos meios e procedimentos adotados ao escrutínio da lei.
No caso em exame, a identificação dos titulares dos aparelhos é questão dependente apenas da escolha do modelo; questão fática, não técnica, posto que o telefone celular é localizado por meio das ERB – Estação Rádio Base, ou seja, as antenas mais próximas que captam os sinais por eles emitidos, as quais permitem saber, com razoável precisão, onde está o seu usuário/proprietário, que pode ser facilmente identificado pela operadora pelo número do telefone ou do IMEI (o chassi do aparelho).
Se tudo não passaria de reunir um conjunto de informações de movimentação massiva de aparelhos celulares anonimizados (uma nuvem de calor), plotada sobre o mapa territorial do estado, a fim de conhecer a quantidade total da aglomeração de pessoas, só se poderia cogitar de violação à liberdade individual caso fossem ordenadas medidas coercitivas contra quem descumprisse o isolamento, o que, diga-se, chegou a ser cogitado pelo Governador de São Paulo.
Abstraindo o caso concreto, da perspectiva da liberdade fundamental à privacidade – que inclui o direito de não ser importunado, de não ser vigiado, não ter seus dados pessoais recolhidos, acessados, manipulados ou transferidos sem o seu consentimento – o problema remete à possibilidade de o Estado, com o auxílio das operadoras de telefones celulares, exercer controle de comportamentos e hábitos do usuário para finalidades indevidas, valendo-se, ademais, de meio de comunicação de natureza pessoal, cujos dados são protegidos contra intervenções estatais, salvo para fins de investigações criminais (art. 5º, X e XII, da CF).
É inegável que as novas tecnologias vêm desempenhando relevante papel a serviço da prevenção de doenças e salvação de vidas humanas. No entanto, ações governamentais que incrementam os sistemas de vigilância digital sem justificativas fundadas, sem que se conheçam os critérios e métodos adotados e sem o consentimento do cidadão, contribuem para o aumento da desconfiança nas autoridades públicas e, no limite, frustram os próprios resultados esperados.
Ante o potencial avassalador de riscos que essas tecnologias associadas à chamada inteligência artificial trazem aos cidadãos, notadamente com as concretas experiências da China, Rússia e Coreia do Norte, sociedades de diversos países democráticos exigiram a criação de leis com o objetivo de alcançar um adequado equilíbrio entre seu uso e os direitos fundamentais, para a proteção das pessoas e da sociedade em geral.
A União Europeia introduziu, em maio de 2018, o RGPD – Regulamento Geral de Proteção de Dados – ao lado da Diretiva 2002/58/CE, sobre a privacidade e as comunicações eletrônicas. E no Brasil, a Lei nº 13.709/2018, a nossa LGPD, baseada naquela, entra em vigor em agosto do corrente ano.
A lei brasileira estabelece os direitos dos usuários, os deveres dos agentes de tratamento de dados e a responsabilidade civil e administrativa de pessoas físicas e jurídicas, de direito público e privado, por infração às suas normas; e, embora ainda não tenha entrado em vigor, essa lei constitui um importante corpo orgânico de caráter doutrinário que pode servir, desde logo, como referência para ações governamentais e de interpretação pelos tribunais.
A administração pública está autorizada pela lei a fazer o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres. A par disso, pode fazê-lo ainda para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro; epara a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária.
Mas para isso o Poder Público deverá seguir as estritas regras de procedimentos quanto ao recolhimento, tratamento, controle e disponibilização de dados pessoais, pois, em Direito, são os meios que legitimam os fins.
O apetite de governantes pelo monitoramento pessoal é tão nocivo quanto o vírus da doença. Dados pessoais prestam-se tanto para fins públicos quanto para finalidades ilegítimas, como as de condicionar ou induzir ou manipular o usuário a escolher produtos, serviços e até eleger governantes (v.g. o caso Facebook – Cambridge Analytica).
E se os governos puderem se associar a empresas especializadas em lucrar com os nossos dados, dispondo da possibilidade de cruzar imensos bancos de dados públicos e privados sobre nós, inclusive dados sensíveis que não conhecemos nem controlamos, perderemos a própria autodeterminação. Estaremos permitindo que decidam contra nossos direitos sem que saibamos o porquê, sem possibilidades de defesa, enfim, transferindo o nosso poder de decisão a terceiros.
Em conclusão, embora seja plenamente legítimo o uso desse tipo de monitoramento para a tutela da saúde, tais medidas, de acordo com o ordenamento jurídico, devem: 1) ser previstas em lei; 2) ser justificadas pelo interesse público e proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); 3) ser determinadas pelas autoridades de saúde pública competentes; 4) ter métodos e procedimentos publicizados, para controle social e eventual correção; 5) ser limitadas pelo tempo imprescindível de controle da doença, e 6) prever a destruição dos dados armazenados ao fim do período.
O Poder Público deve assegurar, ainda, que os dados pessoais sejam anonimizados em todo o processo, garantir que sua utilização não seja admitida para qualquer outro fim e estabelecer sistemática de prestação de contas à sociedade.
As reflexões em tempo de pandemia podem brindar um aumento de conscientização por parte da população de que a privacidade é um valor fundamental do ser humano, uma das últimas trincheiras contra o abuso do poder político e econômico. Que os nossos representantes e as autoridades em geral possam assumir, efetivamente, o dever de preservá-lo e defendê-lo em respeito ao Estado de Direito, à soberania popular e à dignidade da pessoa humana.