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O avião da pequena Leidiane

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Leidiane foi concebida num barraco de lona, em meio ao mato rasteiro nos fundos da Estação Rodoviária, e cresceu no ventre de uma mãe consumida pela desnutrição, que, sem instrução, sem esperança e vencida pelas vicissitudes da vida, foi tardiamente para o Hospital Municipal para dar à luz. A pequena criança chegou em severo sofrimento àquela casa de saúde e, ao nascer, em estado gravíssimo, não conseguia respirar sozinha, tendo sido entubada com respiração assistida, sob cuidados intensivos, logo depois do parto. Começava alí o calvário daquela frágil menina, tinha início uma história que calaria os corações mais duros de todo o povo de Alta Floresta, tornando a pequena criança um símbolo da saga e da esperança de toda a população do norte de Mato Grosso.

O Aeroporto Municipal de Alta Floresta foi concluído há 4 anos, recebendo toda a infra-estrutura para vôos diários, inclusive noturnos, de quaisquer aeronaves de grande porte, com uma pista de 2.500m, a segunda maior do centro-oeste brasileiro, objetivando servir de base para os aviões Caça-F5, do Projeto SIVAM – Sistema de Vigilância da Amazônia, e para encurtar a distância do norte de Mato Grosso com o restante do Brasil, entretanto, com o esfriamento desse Projeto, e o desinteresse das autoridades pelo desenvolvimento da região, provavelmente tudo por conta de questões do meio ambiente brasileiro subjugado às pressões internacionais, entraves burocráticos nunca permitiram a correta utilização dessa pista, que atualmente só recebe um vôo diário regular comercial, então feito por aviões turbo-hélice medianos, e outras aeronaves de pequeno porte, sempre no período diurno.

Leidiane, em estado de saúde que a Pediatra denominou de dramático, lutava pela vida, enquanto o sistema de regulação do SUS era acionado para a sua transferência para Cuiabá, à procura de tratamento especializado. A pequena menina, que expelia fragmentos de fezes pelo tubo de respiração, teve várias paradas cárdio-respiratórias, mas a equipe de enfermeiras e de médicos que a assistiam ininterruptamente por 24 horas, a trouxeram de volta….. e a cada volta, demonstrando um anseio incontido pela vida, Leidiane esbravejava intensa e bravamente, agitando braços e pernas com um vigor milagroso, como se clamasse pela misericórdia divina. Havia nela uma força de vida que emocionava toda a equipe médica… e todos se desdobraram sem jamais desistir, mesmo que por inúmeras vezes o estado de saúde da menina já não transmitisse qualquer esperança….

O único meio de transporte de Leidinae teria que ser através de uma UTI aérea, e desde o seu nascimento a equipe do Sistema de Regulação do município e a Direção do Hospital formaram uma corrente de pedidos junto à Secretaria Estadual de Saúde para a liberação desse tipo de transporte. Desde o dia 21 de maio último, data de nascimento de Leidiane, até o dia 23, várias autoridades foram contactadas sem tréguas, até que a UTI foi concedida, entretanto, um novo entrave surgiria: a aeronave foi liberada somente às 17 horas, e não haveria tempo hábil para se buscar a criança, uma vez que o Aeroporto local não recebia vôos noturnos. A menina, porém,

não suportaria esperar até o outro dia, e deu-se, então, o início de uma nova luta, com dezenas de contatos junto às autoridades da Infraero, Aeronáutica, Cindacta, ANAC, até que uma alta patente da Aeronáutica autorizou o vôo noturno da UTI aérea em Alta Floresta. As luzes da pista foram acesas, o sistema de segurança foi acionado, a torre se preparou, e a aeronave pousou às 22 horas….., enquanto milhares de pessoas presentes no Parque da Expoalta – Exposição Agropecuária de Alta Floresta, localizado ao lado do Aeroporto, onde se realizava a feira anual, olhavam atônitas e incrédulas para a aproximação daquela aeronave àquela hora da noite…

Em determinado momento, antes da chegada da UTI, o aparelho de respiração que mantinha a vida de Leidiane sofreu séria avaria. A Pediatra, que comandava pessoalmente o seu funcionamento, mantendo a pressão necessária de oxigênio e ar comprimido, viu, desesperada, que a menina ofegava convulsivamente. Imediatamente aumentou a pressão para o valor máximo, mas a máquina não respondeu por completo, pois o ar comprimido, inexplicavelmente, baixou a zero, fato percebido pelo leigo quando acontece a queda a nível mínimo de uma bolinha existente na tubulação do aparelho. Causas foram rapidamente buscadas, mas nada explicava a avaria…, entretanto, Leidiane não piorou, mantendo uma respiração regular para o seu estado físico. A Pediatra, então, não tentou qualquer outra manobra. Parecia existir ali a presença de um anjo-da-guarda da criança, como se veria depois…

O avião aterrissou às 22, e decolou às 23 horas, levando Leidiane à procura da vida; tão frágil e humilde criança provocaria na população um sentimento de comoção, solidariedade e de revolta. De comoção pelo seu prematuro sofrimento, de solidariedade pela esperança de todos na sua salvação e de revolta pela pergunta que não quis se calar: se descia naquele momento um avião à noite, sem qualquer problema técnico da pista ou da torre, segundo o seu Comandante, o que significava que a não homologação do Aeroporto era injustificada, por que as vidas de outras crianças e adultos, também com graves problemas de saúde, se perderam em outras ocasiões numa burocracia inexplicável, ao não se permitirem vôos noturnos naquele Aeroporto? O eco dessa pergunta se repetiria para todas as autoridades locais, do Estado e da União, e se desdobraria também através do clamor popular que se sucedeu, questionando-se a discriminação submetida a toda a população do norte de Mato Grosso pelas autoridades federais, através de outras ações similares, como a política imposta para o uso da terra, sem contrapartida para manter a vida humana na Amazônia, a morosidade do asfaltamento da BR Cuiabá-Santarém e a truculência da Polícia Federal e do IBAMA na região.

Leidiane veio ao mundo por iniciativa dos seus pais, que não lhe disseram das terríves provas por que teria de passar; a população do norte de Mato Grosso veio para a região trazida pelos governantes, com promessas de imensas áreas de terra a serem exploradas, no sentido de integrar para não entregar, e não foi avisada sobre o a opinião das ONGS ambientalistas e dos paises mais ricos. Leidiane, à beira da morte, se negou a entregar a própria vida, os habitantes da Amazônia, à beira do abandono, se recusam a perder espaço para outros animais que são colocados como seus superiores. O avião da pequena Leidiane será o marco que mudará o curso da

história de todo o norte de Mato Grosso…, e reacenderá a esperança de milhares de pessoas no sentido de que tempos melhores virão, e que o ser humano nessa região será respeitado em seu habitat, como o são outros animais do planeta….

O desdobramento pela chegada do avião daquela desconhecida, humilde e pequena criança viria rapidamente: no próximo dia 18, uma grande Empresa aérea, a BRA, em parceria com a Ocean Air, dará início a vôos regulares e diários entre Alta Floresta e todo o Brasil e vários outros países, utilizando-se de aeronaves Boeing 737, com 140 lugares, com previsão de horários noturnos, interligando o norte de Mato Grosso com o resto do mundo. Leidiane não foi a responsável por esse fato, mas a sua chegada e a sua luta pela vida poderão ter contribuído para traçar o divisor de águas entre o isolamento da região e a sua inserção com maior contundência no mundo dos homens.

Hoje, Leidiane se recupera bem, e já está fora de perigo. As autoridades de Alta Floresta se movimentam para torná-la adotada pelo município, garantido-lhe o futuro que parecia ter se perdido ao nascer, transformando-a no símbolo da força de toda a população do norte de Mato Grosso que, não raras vezes, se vê também à beira da desesperança por efeito de forças desconhecidas oriundas dos nossos administradores em nível superior. Leidiane haverá de mostrar que nem tudo está perdido quando se tem fé: segundo a Pediatra que a assistiu, a manobra tentada para melhorar a respiração de tão frágil criança, quando o aparelho não respondeu, elevaria a pressão ao máximo, correndo-se o risco de estourar os seus pulmões, o que felizmente não aconteceu, em virtude da avaria da máquina…., entretanto, tão logo Leidiane deixou o Hospital rumo à UTI aérea, o aparelho foi ligado em outra criança, funcionando normalmente, o que podia ser visto por qualquer leigo quando a bolinha do tubo de ar comprimido passou a se movimentar na parte de cima do respirador, sem qualquer impedimento, como se não tivesse existido qualquer avaria….

Robson Valadão é secretário municipal de Saúde de Alta Floresta

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