Na década de 40 do século passado, os leitores brasileiros foram presenteados com a publicação do livro Os mais belos contos russos dos mais famosos autores, que foi traduzido em português por Enéias Marzano. Uma coletânea antológica de fatia importante da literatura russa.
Um dos contos narra a luta travada entre guerreiros imbatíveis e cavaleiros imortais. 7 guerreiros comemoravam a invencibilidade nas várias batalhas disputadas, quando, no horizonte, surgiu um cavaleiro, armado de espada e escudo, e seguiu em disparada contra o grupo. Ao se aproximar, foi recebido por um dos cavalheiros que, a um só golpe de espada, o rachou ao meio. A coisa não acabou por aí, já que cada uma das metades se tornou novo cavaleiro, que, não demorou muito, foram golpeados por outros guerreiros. E a coisa só piorava, porque de cada um dos golpeados surgiam outros dois valentes cavalheiros. Multiplicavam a cada golpe de espada. Em poucos dias, os guerreiros, até então invencíveis, foram derrotados pelo exército de cavalheiros.
O PL 8045/2010, em trâmite no Congresso Nacional, que contempla o Novo Código de Processo Penal, diferentemente do que muitos alardeiam por aí, não tem por objetivo aplacar os selváticos índices de criminalidade e de violência vigentes no país. Mas, ao contrário, se aprovado como está, funcionará como espécie de espada multiplicadora de criminosos sanguinários por ausência de punição.
Segundo o Atlas de Violência de 2018, apresentado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 62.517 pessoas foram assassinadas no Brasil no ano de 2016. É uma verdadeira carnificina! Mais de 7 pessoas são assassinadas a cada hora. São mais de 150 assassinatos por dia.
O Brasil é o país com maior número absoluto de homicídios do mundo.
Não bastasse isso, por aqui, o índice de elucidação dos crimes de assassinatos é baixíssimo. Estima-se que é inferior a 8%. Para se ter uma ideia da ineficiência das agências locais de investigação e de punição, este percentual é de 65% nos Estados Unidos, na Inglaterra é de 90% e na França é de 80%.
Em meio a essa contagem voraz de cadáveres e esse índice obsceno de impunidade, o parlamento agracia os assassinos com a chave d’ouro da impunidade, qual seja, a sociedade, representada pelos jurados – juízes de fato e do fato nos crimes dolosos contra a vida -, não poderá ter acesso ao conteúdo dos depoimentos das pessoas ouvidas na fase de investigação criminal sobre o crime que julgarão no Tribunal do Júri.
O Novo Código de Processo Penal proíbe que o Ministério Público informe aos jurados o que as testemunhas declararam na fase de investigação criminal. O novo dispositivo, se aprovado, será mais uma porta larga da impunidade. Isto é, diante de um testemunho esclarecedor prestado na fase de investigação, basta que a testemunha, por uma série de razões, se retrate em juízo, mude de endereço para local incerto ou – numa visão pessimista, mas possível, sobretudo no que diz respeito às organizações e facções criminosas – seja executada antes de depor em juízo para que o acusado alcance a impunidade.
Além disso, entre outros absurdos que ferem de morte a liberdade de expressão e a verdade fática, o novo diploma mantém vigente dispositivo do atual código que proíbe o Ministério Público de informar aos jurados, sob seu ponto de vista, as razões da ausência, do silêncio do acusado ou do uso de algemas.
Ora, os atos e comportamentos assumidos pelo acusado durante a persecução penal do Estado, a exemplo do silêncio, são de suma importância no contexto da apuração e julgamento da causa. O porquê de o acusado estar preso e algemado da mesma forma. A exploração de todos elementos probatórios colhidos tanto na fase de investigação como na fase judicial também é de extrema valia para subsidiar o julgamento dos jurados.
A restrição do que pode e não pode ser dito no Tribunal do Júri impõe um notável e infeliz jogo de amarelinha linguístico, apenas compatível com regime ditatorial, totalmente antidemocrático. Não há justificativa razoável e plausível que autoriza a anulação do direito à liberdade de expressão justamente em um julgamento popular.
Para que o jurado possa formar sua opinião e decidir segundo sua consciência, é importante que lhe seja garantido o acesso às mais variadas informações e argumentos das partes. Não há espaço para meia-verdade no Júri. O Legislativo não pode proibir a utilização de argumentos pelas partes em plenário do Júri por entender inadequado aos interesses de quem quer que seja. Não é legítimo que o Legislativo regule o que os jurados podem e o que não podem ouvir. Há claro atentado contra autonomia tanto da parte que tem a ideia e não pode expressá-la como dos jurados que ficam privados do acesso a ela.
Em outras palavras, em um ambiente democrático como é o Tribunal do Júri, o exercício de debate livre e aberto aos argumentos das partes é a mais pura representação da liberdade de expressão em uma sociedade plural. O melhor recurso para combater um mau argumento é o debate com a parte adversa, a qual incumbe revelar seu desacerto, e jamais a censura legislativa.
Nunca é demais lembrar que o debate no Júri é firmado entre profissionais maiores, capazes e com formação jurídica, que atuam em pé de igualdade. Se de um lado há o promotor de Justiça, do outro há um defensor privado ou público. Além disso, os destinatários dos debates são os jurados, pessoas maiores, capazes e idôneas. Nada justifica o controle prévio do que pode ou não ser dito, já que todo pensamento externado por uma parte pode ser combatido e infirmado pela outra.
Logo se vê então que esse tipo de patrulhamento legislativo no Tribunal do Júri, além de antidemocrático e violador da liberdade de expressão, figura como mais um facilitador da impunidade e da injustiça já que solapa do Ministério Público o direito de informar aos jurados todos os fatos inerentes ao caso em julgamento para que possam julgar a causa com ciência e consciência. A vedação imposta implica clara violação à liberdade de argumentação do promotor de Justiça e ao direito de informação dos jurados. É uma espada potente, que multiplicará a impunidade de assassinos.
Por isso, deve ser embainhada e lançada bem longe do texto legislativo, se de fato tiver a mínima pretensão de combater os crimes de sangue e de reduzir a impunidade.
César Danilo Ribeiro de Novais, promotor do Tribunal do Júri em Mato Grosso, membro do GAECO – Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, coordenador do Núcleo do Tribunal do Júri do Ministério Público do Estado de Mato Grosso e autor do livro A Defesa da Vida no Tribunal do Júri