Na data de 14/07/2021, o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso dá mais um salto em direção à plena juridicidade de seus processos e pronunciamentos, deixando para trás, em passado recente, momentos obscuros de sua história, marcados pelo abuso do poder de controle – para fins pessoais e corporativos – e de graves indícios de arbitrariedade e parcialidade.
Os últimos anos do TCE-MT foram conturbados. Afastamentos inconstitucionais de conselheiros (sem sequer haver denúncia), auditores substitutos de conselheiro pretendendo verdadeira ascensão funcional à cadeira de conselheiro, e, uma postura processual na qual reinava – pela ação e/ou omissão – o desrespeito aos princípios processuais constitucionais e aos direitos das partes e dos advogados.
A volta dos conselheiros, de seu longo e injustificável ostracismo, trouxe novos ares ao Tribunal, permitindo um debate acerca do rumo que a corte de controle pretende traçar. Na lição do conselheiro Antonio Joaquim, “apenas a legitimidade democrática – verdadeira concertação institucional – dos membros titulares do TCE-MT permite uma discussão franca acerca de eventuais alterações”.
Este retorno, que permitiu uma nova postura do TCE-MT, explicitou, contudo, a possível ocorrência de situações de severo abuso de poder, perseguição e arbitrariedade em alguns processos de controle. Abusos estes que ocorreram com a aquiescência de alguns, cometidos às escuras, por um corpo ‘técnico’ escolhido a dedo – e sem nota de ordem de serviço, sem transparência – a fim de perseguir membros de outros poderes e do próprio TCE-MT.
São situações que beiram a um lavajatismo no âmbito do controle externo.
Para fazer frente a isto, a Consultoria Jurídica Geral está tendo, sob a presidência do conselheiro presidente Guilherme Maluf, ampla autonomia e independência para opinar livremente, auxiliar na correção de desvios e defender a observação da Constituição Federal e do Código de Processo Civil nos processos internos e de controle. E é isto, sem falsa modéstia, que estamos fazendo. Alertamos a presidência e os demais conselheiros acerca dos indícios de abuso que estavam – e, às vezes, ainda estão – ocorrendo no TCE-MT. Cumprimos o papel da advocacia pública como primeiro garante da ordem jurídico-institucional.
É esse o contexto da matéria, emitida ontem (14/09/21) pela secretaria de comunicação do TCE-MT e amplamente divulgada nas mídias mato-grossenses, noticiando a declaração de nulidade de uma tomada de contas ordinária viciada desde seu nascedouro, que teve como seu único fim o constrangimento, não republicano, de autoridades públicas. O tribunal pleno do TCE-MT reconheceu, por unanimidade, na esteira de parecer da Consultoria Jurídica Geral e do Ministério Público de Contas, que não pode a corte atuar à margem da legalidade, “passando por cima” de garantias processuais.
Cumpre ressaltar que, em princípio, compete à Consultoria Jurídica a análise sob o aspecto jurídico formal de cada questão que lhe é submetida, sem adentrar, de forma específica, no mérito dos casos. No entanto, diante da gravidade da situação, na qual se constatou a abertura de diversos procedimentos de controle com indícios de abusividade e, até mesmo, com intuito de perseguição, sem fundamentação jurídica ou fática, a Consultoria Jurídica deve se manifestar e deixar seu alerta.
Isso porque é evidente que tais procedimentos, eivados de assombrosas nulidades, maculam a imagem do TCE-MT e ameaçam diretamente toda construção pela plena juridicidade de seus processos e pronunciamentos. Nessa conjuntura, com fundamento na lição de Caio Tácito, merece destaque o fato de que o abuso de poder não decorre unicamente de condutas comissiva, mas também pode ser caracterizado em situações omissivas, isto é, quando o agente deixar de exercer uma atividade imposta a ele por lei, quando se omite nos exercícios de seus deveres.
Dessa forma, é de suma importância que a Consultoria Jurídica, diante de cenários de abuso e arbitrariedades, emita seu alerta ao tribunal pleno do TCE-MT, com vistas a possibilitar eventual atuação da própria corregedoria do órgão e evitar que as ilegalidades se prolonguem no tempo.
O ordenamento jurídico brasileiro não permite, sob pena de gritante desvio de finalidade, que autoridades públicas façam uso de suas atribuições para satisfazer propensões pessoais completamente estranhas ao interesse público. Em outras palavras, os poderes e prerrogativas atribuídas aos agentes públicos devem ser utilizados nos termos da legislação vigente e em busca de benefícios para a coletividade.
Ora, manter-se inerte diante de um contexto de tamanha ilegalidade e arbitrariedade, seria o mesmo que aceitar o retorno aos momentos obscuros de uma história não tão distante, além de deixar de lado a finalidade pública da atuação da corte de contas.
O tema ganha contornos importantes se analisados à luz do abuso de autoridade, assunto que está em voga desde a promulgação da lei n° 13.869, de 05 de setembro de 2019, a qual trouxe nova ótica aos excessos oriundos das ações dos agentes públicos.
O contexto de discussão e aprovação de uma nova lei foi a reação política aos inúmeros excessos ocorridos no desenrolar da operação lava jato, tais como conduções coercitivas ilegais, interceptações telefônicas indevidas, entre outros. Assim, dada a gravidade das consequências geradas, andou muito bem o nosso Parlamento em atualizar e aprimorar um tema tão caro e relevante aos cidadãos e à administração pública.
Nesse sentido, a lei vigente regulou a temática e definiu como crime as ações cometidas por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (art. 1°, lei n° 13.869/2019). O bem jurídico tutelado é, primordialmente, o bom funcionamento do Estado, uma vez que os agentes públicos devem desenvolver suas atividades sempre amparadas na lealdade e probidade e em nome do interesse público. Quer dizer, todo e qualquer poder reclama justificação e, sobretudo, controle.
Isso não quer dizer que a lei criminaliza condutas legítimas de agentes públicos, mas apenas os praticados com excesso ou com finalidade diversa da prevista, sendo assim, não deve ser temida pelos servidores que desempenham suas atividades amparadas na legalidade, no interesse público e dentro de suas competências, sem qualquer finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, bem como por capricho ou satisfação pessoal (art. 1°, §1°, lei n° 13.869/2019).
A existência de um Estado Democrático de Direito impõe limites ao exercício das atividades desempenhadas pelos seus agentes, independentemente de qual autoridade for, já que nenhuma, em hipótese alguma, estará acima do Direito. Nessa perspectiva, não se permite que os limites legalmente estabelecidos sejam extrapolados, sob o manto de um suposto dever legal, isso porque o Direito não aceita tudo, seja em prol de um interesse nobre, seja em nome de pressuposto “combate à corrupção”.
Por fim, vale ressaltar que esses excessos expostos nas operações lavajatistas não estão restritos à Brasília e à esfera da operação lava-jato e, por isso mesmo, distantes de nós, que atuamos em instâncias distintas, como a dos órgãos autônomos. Ao revés, podem ser verificados em todo o cotidiano da Administração Pública e política brasileira, tanto no âmbito judicial, quanto no do controle.
Identificadas situações assim, a lei n° 13.869/2019 poderá oferecer guarida ao controle de abusos e estará à disposição para refutar arbitrariedades e ilegalidades no exercício do poder, não só no lavajatismo da Petrobrás, como também no lavajatismo empregado no próprio âmbito do controle. A cultura do abuso de poder deve ser combatida, a exemplo do que fez o TCE-MT que declarou a nulidade de procedimento fundado e motivado por fins não republicanos.
É sempre bom enaltecer que até na guerra há necessidade de se respeitar limites mínimos de ética. Um “jogo bem jogado” é bonito de se observar, isto é, uma investigação que atua nos seus exatos limites, a acusação e as defesas também, e, por fim, o julgador/instrutor não foge das linhas do campo.
Assim, na decisão de ontem (14/09/2021), um marco após período de trevas, acertadamente, a corte de contas de Mato Grosso sentenciou: não pode o Tribunal de Contas dar margem para um lavajatismo de controle, afinal, lembrando Voltaire, “encontra-se oportunidade para fazer o mal cem vezes por dia e para fazer o bem uma vez por ano”.