O olhar de meu pai me salvou, a atenção de minha vó me salvou, o reconhecimento de meu avô me salvou!
O olhar de meu pai tinha amor expressado ao mirar-me com os olhos apertados, felizes, carinhosos. Não precisava mais nada, era como se olhasse e dissesse: como é bom ter você, fico feliz em você ser quem é e estar viva, você me agrada, como eu quero seu bem! Tudo isso com apenas um olhar, e sempre, sempre era o mesmo olhar.
Daqui para lá era admiração, querer ficar perto, era querer absorver tudo de bom que vinha de seu ser: a sabedoria, os livros, as conversas sobre filosofia teológica. Era o falar sobre religião com calma, sem afetação, sem querer ter razão, apenas falando.
Era, bem mais tarde, estar aberto às novas doutrinas no sentido de conversar sobre elas e vivê-las de algum modo. Eram seus pareceres sobre coisas comuns, assuntos comuns. Eram seus pareceres sobre coisas complicadas, assuntos complexos, era seu jeito despretensioso e engraçado de levar o dia a dia, eram suas graças e brincadeiras e, bem tenramente, suas cantigas de ninar, sua alegria nas noites em que não ministrava aulas a nos embalar em redes, cantando e contando estórias. Era ver em sua relação com a mãe, irmãs, o olhar delas para ele entre bem querer e agradável diversão, muito à vontade e aconchegadas naquela relação.
Era mais tarde suas pescarias, seu modo simples de viver junto à natureza, suas roupas simples de ir à chácara, seu contato impecável com os moradores e cuidadores de lá. Eram suas conversas divertidas com esses moradores como se o mundo fosse muito bom sempre, conversas longas, calmas e pausadas contando seus casos como se fossem amigos de longa data, e eram.
Era a camaradagem com os amigos naquele ambiente simples do mato, as brincadeiras e risadas sobre assuntos simples e singelos. Era o contato com os bichos: cavalos, bois, carneiros, como se fossem animais de estimação com seus nomes divertidos que inventava. Era o sentar na cadeira de fio, ainda na chácara, de forma calma e quieta, e ficar ouvindo os passarinhos cantar enquanto tomava café.
Eram os peixes que chegavam com ele e os amigos de canoa ou, mais tarde, de barco de alumínio tipo "chata", era o falar por um tempo longo sobre os pés de manga háden, plantados por ele e minha mãe. Era o sentar na casinha de Chico e Maria, lá fora à beira do fogão à lenha para esperar, enquanto proseava com eles, a carne-seca com arroz que ela fazia com muito prazer e que saia quentinha, ou o peixe que saia cozido, branco simplesmente mas muito, muito gostoso e bem-feito.
Eram os conselhos aos sobrinhos queridos, era a atenção para com eles ao falar. E mais: era o afeto que brotava de todo o seu ser para com quase todas as pessoas que o rodeavam. Era sua inteligência brilhante, brilhante mesmo, era seu conhecimento de modo geral sobre as coisas, e eram nossas perguntas sempre, como se ele fosse uma enciclopédia ou um oráculo, e vinha sempre algo, e quando não vinha assumia, ponderava… era a música de raiz que cantava quando éramos crianças, era o homem de terno uma boa parte de sua vida, era o sentar com os funcionários em seu trabalho, conversando, enquanto comiam no horário do lanche.
Eram as charadas que fazia com a gente enquanto dirigia o carro nas estradas, durante as viagens, para nos entreter. Eram as brincadeiras na forma de provocações leves e divertidas com sua mãe quando esta estava com mais idade. Era o respeito por seu pai no convite mudo e sutil, para que este morasse em sua casa quando estava sozinho e velhinho.
Era o ficar quieto e resignado, humilde, quando tinha alguma preocupação que não se resolvia, mas que o chateava, e muito. Era a curtição simples e de classe média de assistir aos programas de divertimento e comédia na televisão nos sábados e domingos, era o curtir das graças desses programas, graças simplórias muitas vezes.
Era a coragem e garra de, mesmo já coroa e não sendo costume da época, ter um professor de inglês americano a lhe dar aulas de inglês em casa pela sede de saber, e talvez um sonho de viajar. Era nos levar ao circo quando crianças e fazer disso um acontecimento único, importante e divertido.
Era o acordar e sentar-se na beira da cama e orar todos os dias antes de levantar, numa reverência a algo maior e sagrado, na solicitação de proteção. Era dormir em lençóis simples e parecer que nunca percebia que esses mesmos lençóis poderiam ser mais sofisticados e confortáveis. Era ter alma simples e ao mesmo tempo com buscas sofisticadas, no sentido do tipo de interesse de conhecimentos que tinha.
Era a garra e a vontade de viver mesmo sendo destronado, pela doença, do lugar altivo de um juiz. Era o aceitar e ter coragem, apesar da bagagem dogmática, de reinventar a vida para conviver com a doença e continuar a viver de forma prazerosa como sempre viveu.
Era ter a hora do jornal nacional sagrada e ficar incomodado se não respeitássemos sua necessidade de concentração nas notícias. Era curtir a contemplação de paisagens nas idas para Chapada…contemplação espiritualizada. Era ter uma necessidade premente de natureza sempre, mesmo que não falasse.
Era chegar na chácara e pedir para eu fazer farofa de ovo acebolada, era ir com roupas bem simples e confortáveis e ficar passeando ao redor olhando suas árvores, seus bichos, falando com as pessoas que lá moravam, sempre com afeto, respeito, prazer de falar.
Era o amor pelos netos. Era o agregar. Era confiar em nossa capacidade de ser e de viver, simplesmente por nos olhar e checar que éramos o bem e estava tudo bem…
Era esse meu pai, que me salvou!
Adriana Verlangieri Ferreira Mendes é cuiabana – graduada em Direito pela UFMT; Fiscal de Tributos Estaduais/MT; Aluna de Filosofia na UFMT.