Não é exagero dizer que a maioria vê o Brasil como um objeto contraditório: um lado olhando para trás e o outro mirando um almejado, mas inalcançável progresso. Encarcerados nessa imagem dupla, ficamos deprimidos com a ausência de uma ideal e exclusiva “brasilidade” – uma expressão única e dominante de nós mesmos como coletividade. Assim, em vez de termos dois, três ou uma multidão de “Brasis”, haveria apenas um só retrato e uma só brasilidade. No caso, a que estaria mais perto dos modelos de progresso, desenvolvimento e modernidade nascidos na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Um molde que teríamos de adotar sob pena de continuarmos divididos e condenados ao atraso ou, pior que isso, a incoerência política e social.
Abordar o Brasil exige que se discuta os modos pelos quais essa coletividade é constituída enquanto totalidade significativa, não nos damos conta de que pode haver um Brasil, mas muitas brasilidades. De fato, como um estado-nacional moderno fundado num território, administrado por leis e por um governo soberano e eleito pelo povo, o Brasil tem aquela unidade que se vê nos mapas, sendo algo exclusivo e uno. Mas esse Brasil bem delimitado, relativamente concreto; esse Brasil medido e avaliado pelos índices econômicos, engendra muitas imagens e representações.
Ele projeta muitas brasilidades que o redefinem e constroem Há, então, a brasilidade formal das leis, da Constituição, do hino, da bandeira, dos diários oficiais, dos bancos, dos discursos presidenciais, do Congresso Nacional, das universidades e dos problemas urbanos e rurais; mas há também um conjunto de brasilidades informais e populares, cuja formulação e consciência pode ser fonte de alegria ou de profunda perturbação. Pois ao lado dessa brasilidade que lemos nos jornais e que se representa como texto escrito e imagem de TV, que segue a lógica do individualismo, do capitalismo e do mercado; temos também brasilidades marginais que rejeitam esses padrões da modernidade e não se constituem por meio da ciência, das letras e da tecnologia, mas por meio da comida, do canto, da dança, das fantasias, das festas e de uma profunda relação com o sobrenatural. Essa é a brasilidade mestiça e relacional dos terreiros de candomblé e umbanda, do jogo do bicho, dos almoços de domingo, da sensualidade, do samba e das favelas. Do sertão e das comunidades híbridas, situadas no ponto de interseção entre o antigo e o novo, o local e global, o de dentro e o de fora.
Comunidades e brasilidades que vivem na pobreza material, mas desfrutam de uma imensa riqueza cultural e ideológica, pois participam de vários mundos e valores simultaneamente, acreditando em Deus e no trabalho; e também na sorte, no poder das encruzilhadas, do destino e dos mitos e religiões.. Esse “caldeirão” cultural talvez explique as vaias que o público dos Jogos Pan-americanos, “brindou” o Presidente Lula. Alguns aventaram a idéia da luta de classes: pobres contra ricos. Outros, o desgaste do Governo, com tantos escândalos não resolvidos. Mas, é de se pensar, também, no próprio espírito do brasileiro- avesso a formalidades e pronto a mostrar descontentamentos ou irritação. Tudo é possível. Uma coisa é certa: Lula desceu do pedestal de Salvador da Pátria- ou aquele que reiteradamente afirma que nunca se fez ou se produziu tanto, desde Cabral, como ele tem feito. Um pouco de humildade e senso de realidade, ajudaria o Presidente a entender o caso, com mais objetividade do que se sentir magoado. E viva o PAN e nossas medalhas, suadas num país do samba e carnaval, como únicas modalidades de cultura.
(*) Auremácio Carvalho- advogado e Sociólogo, Ouvidor de Polícia de Mato Grosso.