A questão do título é uma entre tantas que se pode apresentar no contexto de aplicação da Colaboração Premiada, instituto em torno do qual gravitam diversos questionamentos críticos, alguns ainda não suficientemente respondidos.
Trata-se de saber se a posição do colaborador pode ser equiparada a de corréus não colaboradores, inclusive os delatados por ele, para, ao argumento da igualdade abstrata de todos os acusados no processo, estender a estes últimos medidas cautelares diversas da prisão.
A análise exige, antes de tudo, ter em conta os fundamentos da colaboração premiada e os efeitos que esse negócio jurídico produz no processo criminal.
Deve-se ter em mente que, toda norma que prevê benefícios a acusados, seja na parte geral do Código Penal (atenuantes, causas de diminuição de pena, substituição de pena, livramento condicional, suspensão do processo, anistia, graça, induto etc), seja na sua parte especial (v. g. arts. 121, §§1º e 5º, 155, § 2º), durante o processo (art. 319 e 321 do CPP) e até na fase de execução da pena (art. 112 da LEP), sempre obedece a razões de política criminal.
O legislador, no exercício de seu poder constitucional de conformação do Direito Penal, orienta-se basicamente pelos fins de repressão e prevenção do ilícito penal, para a defesa de bens e interesses jurídicos, e pode, em determinados âmbitos, instituir mecanismos próprios, dirigidos a evitação de futuros delitos e ao esclarecimento dos já cometidos, mediante determinados estímulos (prêmios) ao criminoso.
Ao lado das disposições legais ordinárias, aplicável a todo acusado no processo penal, surge então um conjunto de normas especiais aplicáveis unicamente a autores de determinados crimes, normalmente os de maior gravidade. O pragmatismo que caracteriza essas normas baseia-se na ideia de que é preferível ceder benefícios penais a criminosos arrependidos a ver triunfar a impunidade de criminosos que não poderiam ser descobertos/punidos sem a colaboração que vem de dentro das organizações criminosas, dos próprios integrantes ou participantes dos crimes.
Os prêmios, no caso brasileiro, vão desde diminuições de pena (até 2/3), passando por isenção de pena até acordos de imunidade. E estende-se até mesmo à fase posterior à condenação, com a progressão do regime de seu cumprimento (art. 4º, § 5º da Lei 12.850/2013).
O escopo da lei nº 12.850/2013 é, não apenas alcançar autores de crimes graves até então impunes, mas desestruturar aparatos, meios e instrumentos geradores das condições delituosas. O Estado decide abrir mão de parcela do jus puniend em favor do colaborador como resultado de um cálculo de eficiência (produtividade e economicidade): destruir a usina de crimes é eliminar a fonte da energia que afeta os bens e interesses gerais.
A lógica subjacente a essa estratégia é: deixar de punir, ou punir em menor grau alguns, para apurar crimes graves, conhecidos ou desconhecidos, que tenham ocorrido, que estejam ocorrendo ou impedir os que estejam na iminência de ocorrer, a fim de proteger bens ou interesses jurídicos penais de natureza metaindividual ou coletivos.
A escolha prioriza a função preventiva da pena. Se, quanto ao colaborador, a função retributiva não é plenamente alcançada (em geral ele sofre alguma sanção penal e só excepcionalmente fica impune), a prevenção geral é potencializada com a condenação de corréus, o desmonte da organização e a recuperação do produto dos crimes, notícia que costuma se propagar com alta intensidade nos meios de comunicação, gerando efeito pedagógico que contribui para a consciência social na vigência do Direito Penal e aumento da confiança da população no Sistema de Justiça.
A prestação jurisdicional recebe poderoso influxo com o apoio do colaborador. A aplicação da lei – absolver inocentes e punir culpados – possibilitando decisões mais céleres, inclusive, ganha em eficácia (fazer o que é necessário e adequado com a qualidade esperada no tempo certo =qualidade, celeridade e presteza).
E, ao contrário do que alguns afirmam, o colaborador não tem interesse em mentir, fazendo falsa delação ou criando versões fantasiosas que não possam ser provadas. A obtenção dos prêmios depende fundamentalmente da qualidade (verdade objetiva) das informações que prestar.
As obrigações legais a que o colaborador se sujeita, ao assumir como verdadeiras as imputações que lhe pesam e apontar as fontes de provas correspondentes, implicam lealdade para com o Estado, sob pena de, além de não alcançar os benefícios visados, e, com isso, vir a sofrer sanções integrais, poder, também, ser punido por crime de falsa delação (art. 19 da Lei).
Mais do que isso, ao confessar os seus crimes, delatar corréus, indicar ou fornecer provas, etc, o colaborador – e sua própria família – fica exposto a riscos pessoais, razão porque a própria lei lhe confere medidas de proteção para a defesa de sua integridade física, além de outras (art. 5º, I, da Lei 12.850/2013). E é claro que sua proteção poderia ficar comprometida se vier a descumprir o acordo judicializado.
A colaboração real promove, também, efetividade (produção de resultados na perspectiva do cliente) à prestação jurisdicional do Estado ao permitir, além da cessação de crimes fim, que recursos confiscados sejam aplicados em beneficio da sociedade, tão carente de serviços nos campos da saúde, educação e segurança pública.
Esses fundamentos e justificativas mostram a relevância do mecanismo, como parte da política estatal voltada ao combate a organizações criminosas, e afastam a ideia de certo modo preconceituosa que alguns mantêm quanto ao colaborador.
As normas legais que concedem prêmios são valoradas em função do mérito do agraciado; o prêmio (condecoração) é a contrapartida de um comportamento valioso. Por isso, do ponto de vista estritamente técnico, ao aplicador da lei não é dado outra opção senão reconhecer o colaborador como importante auxiliar da Justiça.
O fato de o acusado decidir render-se à Justiça, depondo “as armas” jurídicas que lhe são asseguradas, confessando crimes, devolvendo dinheiro desviado e contribuindo decisivamente para minorar os seus efeitos, quando gozava da garantia constitucional de ser presumido inocente – a despeito do caráter utilitário de sua decisão – é indicador objetivo de sua opção pela virtude e a Justiça.
A esse respeito disse Luis Jiménez de Asúa (1889-1970), em artigo publicado em 1914 na Revista General de Legislación y Jurisprudencia, na Espanha, sob o título: La Recompensa como prevención general. El Derecho Premial: El Derecho Premial está en la conciencia de todos; premio y castigo son dos palancas que mueven a la voluntad; la justicia reclama, indudablemente, premios para el que ha realizado una acción virtuosa, para el hombre que ha mantenido durante su existencia una conducta honrada, frente a los peligros y conflictos de la vida. (Cfr. Garcia-Mercadal y Garcia-Loygorri, Fernando, Penas, distinciones y recompensas: nuevas reflexiones em torno al derecho penal. ERAE, Emblematica 16 (2010).
Por tudo isso, prestando relevante serviço à causa da Justiça Pública, o colaborador estará, objetivamente, sempre em melhores condições morais que os delatados, que costumam seguir negando responsabilidades contra todas as evidências probatórias.
Conclusões:
Em conclusão, pode-se afirmar:
1) que do ponto de vista jurídico, a colaboração do investigado/acusado é um valor para o Direito, produto de ponderação do legislador, entre o direito/dever de responsabilização penal integral de todos pelo Estado e o dever de apuração efetiva de determinados crimes graves, cujo resultado só é possível com a ajuda dos próprios integrantes ou participes da organização criminosa.
2) E como valor que é, o negócio jurídico realizado entre o Estado e o investigado/acusado deve ser valorizado em todas as fases do processo, conferindo-se ao colaborador o tratamento correspondente aos resultados práticos de sua efetiva atuação.
3) Os graves ônus assumidos pelo colaborador, com a confissão de seus crimes, renúncia ao exercício do direito de defesa, e as graves consequências legais do inadimplemento do acordo, revelam a notável diferença entre a sua situação pessoal e a de outros acusados, que sigam mantendo postura meramente defensiva, sem qualquer ônus, podendo denotar, em certos casos, o propósito de seguir beneficiando-se dos efeitos dos crimes praticados pela organização criminosa de que faria parte.
4) Há verdadeira oposição entre as defesas dos corréus delatores e delatados. Por isso mesmo o colaborador corre perigo e é destinatário do direito à proteção pessoal, estando sujeito a contestações de corréus, tudo a demonstrar quão impróprio é situá-los numa mesma posição processual para assegurar-se-lhes igual tratamento.
Mauro Viveiros é Procurador de Justiça titular da Procuradoria Criminal Especializada na área de Crime Organizado, Mestre em Direito pela UNESP, Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Complutense de Madrid e Especialista em Estudos sobre o Crime Organizado pela Universidade de Salamanca-ES.