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Considerações Sobre a Violência de Gênero e Violência Doméstica Contra a Mulher

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A violência de gênero está caracterizada pela incidência dos atos violentos em função do gênero ao qual pertencem as pessoas envolvidas, ou seja, há a violência porque alguém é homem ou mulher. A expressão violência de gênero é quase um sinônimo de violência contra a mulher, pois são as mulheres as maiores vítimas da violência.

Assim, o ponto nevrálgico deste artigo, destaca-se a implementação da Lei 11.340/06, a chamada Lei Maria da Penha, a qual define violência doméstica ou familiar contra a mulher como sendo toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida.

Partindo da premissa da violência de gênero e da importância da Lei Maria da Penha neste país, o objetivo principal é identificar os elementos que compõem as relações degênero (características atribuídas a cada sexo pela sociedade) contra a Mulher.

A violência doméstica e conjugal vem sendo debatida cada vez mais na atualidade, e tem sido frequentemente investigada inclusive no contexto acadêmico, com particularidade no âmbito da Psicologia e do Direito.

Ao tentarmos explicar a violência contra mulheres no contexto doméstico, iremos nos deparar com um grande número de diferentes perspectivas. Ou seja, isto demonstra o quanto esta questão é complexa e possui multifacetas.

O debate sobre os mecanismos de combate à violência de gênero não é novo, já tendo sido experimentadas em diferentes alternativas. Em meados dos anos 80 houve uma reorientação geral do trabalho policial no âmbito da (violência conjugal), em especial no Canadá e nos Estados Unidos, se estendendo a outros países, sendo reconhecidas três possibilidades básicas de encaminhamento em tais casos: a mediação por terceiro/Justiça Restaurativa; a separação do casal/Justiça de Família; e ainda a prisão do agressor/Justiça Penal.

Com referência às relações das mulheres com o mundo do direito, Sabadell (2008) salienta que há algumas décadas pesquisadoras oriundas dos movimentos de mulheres começaram a estudar a possível contribuição do sistema jurídico para a perpetuação das violações dos direitos da mulher. Surgiram, assim, estudos que realizavam tanto leituras internas, relativas à estrutura do direito positivo, como leituras externas, relativas à eficácia e às relações entre o direito e a cultura machista/sexista.

Salientando as dificuldades para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, a autora supracitada lembra os limites do direito para resolver o problema.

Esses limites tornam-se claros com a eficácia secundária das normas que combatem no papel a violência doméstica e também no fato de que a eventual punição do agressor quase nunca resolve o problema de forma satisfatória para a mulher, e por que não dizer para a sociedade?

Em importante estudo sobre o papel do sistema judiciário na resolução dos conflitos de gênero, Izumino (2004) conclui, seguindo hipótese elaborada a partir de outros estudos, que a Justiça, ao julgar os casos que lhe são apresentados, pauta-se não apenas pelo crime e a presença de elementos que comprovem sua ocorrência (autoria, materialidade e os vínculos pertinentes a esses dois aspectos), mas por dispositivos extralegais que se referem aos comportamentos sociais das vítimas e de seus agressores.

Em relação aos casos que envolveram conflitos de gênero, os papéis sociais são sempre referenciados às instituições família e casamento e aos aspectos definidores desses papéis sociais nessas instâncias: sexualidade feminina e trabalho masculino.

O fenômeno da violência doméstica e conjugal é emblemático, logo, difícil de resolver partindo de uma perspectiva única. O conflito de gênero que está por trás da violência doméstica não pode ser tratado pura e simplesmente como matéria criminal. O retorno do rito ordinário do processo criminal para apuração dos casos de violência doméstica não leva em consideração a relação íntima existente entre a vítima e o acusado, não considera a pretensão da vítima nem mesmo seus sentimentos e necessidades.

É possível pensar, a partir das reflexões e da pesquisa realizada, que o mais adequado seria lidar com a questão da violência de gênero fora do sistema penal, radicalizando a aplicação dos mecanismos de mediação, realizada por pessoas devidamente treinadas e acompanhadas de profissionais do Direito, Psicologia e Assistência Social.

A Lei Maria da Penha tem como foco principal criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar. Em outras palavras, tornam-se imprescindíveis ações voltadas à atenção e ao cuidado de vítimas e também de agressores nos casos de violência doméstica, trazendo contribuições de diferentes campos do conhecimento na busca da resolução dos conflitos de gênero.

“Saímos da ditadura do masculino para a ditadura de um feminino esteriotipado. Um feminino que nega tudo o que é feminino.” (Janaína Paschoal, “Mulher e Direito Penal”, Coordenadores: Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 3.)

O Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente, na sessão do último dia 09 de fevereiro, por maioria, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha. Na mesma sessão, agora por unanimidade, os Ministros acompanharam o voto do relator da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 19, Ministro Marco Aurélio, e concluíram pela procedência do pedido a fim de declarar constitucionais os artigos 1º, 33 e 41, da Lei Maria da Penha.

Devemos frisar que a lei em comento não contém nenhum novo tipo penal, apenas oferece um tratamento penal e processual diferenciado para as infrações penais já elencadas em nossa (exagerada) legislação. De toda sorte, entendemos delicada e perigosa a utilização, em um texto legal de natureza penal e processual penal (e gravoso para o indivíduo), de termos tais como “diminuição da auto-estima”, “esporadicamente agregadas”, “indivíduos que são ou se consideram aparentados”, “em qualquer relação íntima de afeto”, etc., etc.

Assim diz Paulo Freire, “só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo.”

Nada mais justo do que a tutela penal diferençada para hipossuficientes, mas sem ferir a Constituição Federal e aos princípios dela decorrentes e inafastáveis.

Observemos o entendimento de Naele Ochoa Piazzeta quando afirma que “corretas, certas e justas modificações nos diplomas legais devem ser buscadas no sentido de se ver o verdadeiro princípio da igualdade entre os gêneros, marco de uma sociedade que persevera na luta pela isonomia entre os seres humanos, plenamente alcançado.”

Willis Santiago Guerra Filho, “princípios como o da isonomia e proporcionalidade são engrenagens essenciais do mecanismo político-constitucional de acomodação dos diversos interesses em jogo, em dada sociedade, sendo, portanto, indispensáveis para garantir a preservação de direitos fundamentais, donde podermos incluí-los na categoria, equiparável, das ´garantias fundamentais”.”

Esta clara a impropriedade técnica do termo “renúncia”, pois se o direito de representação já foi exercido (tanto que foi oferecida a denúncia), obviamente não há falar-se em renúncia; certamente o legislador quis referir-se à retratação da representação, o que é perfeitamente possível, mesmo após o oferecimento daquela condição específica de procedibilidade da ação penal.

Diferentemente da regra estabelecida no art. 25 do Código de Processo Penal, a retratação da representação pode ser manifestada após o oferecimento da denúncia, desde que antes da decisão acerca de sua admissibilidade. Neste ponto, duas observações: primeiro a lei foi mais branda com os autores de crimes praticados naquelas circunstâncias, o que demonstra de certa forma uma incoerência do legislador.

Ora, se a intenção era reprimir com mais ênfase este tipo de violência, por que aumentar o prazo para a retratação da representação? Por ser mais benéfica para o autor do crime a possibilidade de retratação em tempo maior que aquele previsto pelo art. 25, CPP.

Tratando-se de norma processual penal material, e sendo mais benéfica, deve retroagir para atingir processos relativos aos crimes praticados anteriormente à vigência da lei (data da ação ou omissão – arts. 2º. e 4º. do Código Penal).

Entendo que a retratação deve ser necessariamente formal (formalizada), o mesmo não ocorrendo com a representação, que como sabemos, dispensa maiores formalidades (sendo este um entendimento já bastante tranquilo dos nossos tribunais e mesmo da Suprema Corte).

O prazo para o oferecimento da representação (bem como o dies a quo) continua sendo o mesmo (art. 38, CPP). Ademais, é perfeitamente válida a representação feita perante a autoridade policial, pois assim permite o art. 39 do CPP.

A retratação deve ser um ato espontâneo da vítima (ou de quem legitimado legalmente), não sendo necessário que ela seja levada a se retratar por força da realização de uma audiência judicial.

Como, então, tratar diferentemente autores de crimes cuja pena máxima aplicada não foi superior a quatro anos, se atendidos os demais requisitos autorizadores da substituição (art. 44 do Código Penal)?

Assim, acusados por crimes como furto, receptação, estelionato, apropriação indébita, peculato, concussão, etc., podem ser beneficiados pela substituição da pena privativa de liberdade por prestação pecuniária ou multa. Já um condenado por uma injúria ou uma ameaça (pena máxima de seis meses), estará impedido de ser beneficiado pela substituição, caso tenha praticado aqueles delitos contra uma mulher, em situação de violência doméstica e familiar. Estamos diante de um verdadeiro absurdo; a violação aos referidos princípios constitucionais estão claros como a luz solar.

Nos leciona Sebástian Melo, “sendo o Direito Penal um instrumento de realização de Direitos Fundamentais, não pode prescindir do princípio da proporcionalidade para realização de seus fins. Esse princípio, mencionado com destaque pelos constitucionalistas, remonta a Aristóteles, que relaciona justiça com proporcionalidade, na medida em que assevera ser o justo uma das espécies do gênero proporcional. Seu conceito de proporcionalidade repudia tanto o excesso quanto a carência. A justiça proporcional, em Ética e Nicômaco é uma espécie de igualdade proporcional, em que cada um deve receber de forma proporcional ao seu mérito. Desta forma, para Aristóteles, a regra será justa quando seguir essa proporção. Nas palavras do filósofo grego em questão, a sua igualdade proporcional representa uma ´conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta acepção é o meio-termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o proporcional´.”

Do exposto, entendo que os arts. 17 e 41 da Lei nº. 11.340/2006, além do inciso III do art. 313 do Código de Processo Penal, não devem ser aplicados, pois, apesar de normas vigentes formalmente (porque aprovadas pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Poder Executivo), são substancialmente inválidas, tendo em vista a incompatibilidade material com a Constituição Federal. Não é demais lembrarmos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz.”

José Naaman Khouri é Defensor Público titular da 1ª Defensoria Criminal e atua na 1ª Vara Especializada de Violência Doméstica na defesa do acusado.

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