Quase 100 anos depois de lançado, o livro O Processo, escrito pelo tcheco Franz Kafka, segue muito atual. A obra mostra um bancário que acorda certo dia e, sem motivo algum, descobre que é alvo de um processo por um crime do qual não faz ideia e, o que é pior, não é revelado por seus acusadores.
A contemporaneidade do personagem Josef K., o bancário retratado na obra de Kafka, fica clara quando nos deparamos com o alto número de inquéritos instaurados pelos órgãos competentes e que não são arquivados quando os responsáveis por tais investigações não encontram o menor indício de autoria e materialidade dos atos apurados.
O efeito de tais práticas é devastador para qualquer investigado. Isso fica potencializado quando a apuração, por qualquer motivo, ganha as manchetes dos meios de comunicação. Antes mesmo de se constatar a existência de elementos mínimos para um processo, as pessoas que têm seus nomes ligados às apurações ganham o rótulo de condenadas.
Vejamos, por exemplo, o caso do deputado federal Nilson Leitão (PSDB). Ele era investigado desde 2001, ou seja, há 17 longos anos, por supostas irregularidades que, de acordo com o que afirmou o Ministério Público à época, teriam ocorrido quando o parlamentar era prefeito de Sinop. Ao longo de mais de 6 mil dias, investigadores, promotores e procuradores reviraram a vida do deputado e nada encontraram.
Ao invés de concluírem que não havia prova, que não havia nenhum indício sequer, todos os responsáveis pela apuração optaram por manter o procedimento aberto, ao invés de reconhecerem o princípio da presunção da inocência de Nilson Leitão e solicitarem o arquivamento. O fim deste processo “kafkiano” foi decretado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, apenas no início deste ano.
Imagine como foram todos estes dias para o político, pessoa pública, que periodicamente coloca seu nome à aprovação do eleitor de Mato Grosso, convivendo com a desconfiança gerada pelo estardalhaço com que o fato foi anunciado. Tenho certeza de que ele, assim como tantas outras pessoas, se sentiu como Josef K., que ao longo da obra transitou por ruas, vielas e becos da burocracia estatal, sem o direito a ser declarado inocente, como foi agora.
Que não se confunda esta crítica com a prerrogativa dos órgãos legalmente constituídos para investigar quem quer que seja. Isso não se discute, ninguém está acima da lei. Mas é preciso que se reveja a atuação no sentido de se encerrar apurações quando nenhuma prova é encontrada para que a triste sina de Josef K., que ao final, não sabe nem pelo que se declara inocente, não se multiplique mais.
Ussiel Tavares – advogado em Mato Grosso