Era um sábado, 08 de fevereiro de 1997, noite de carnaval, quando a jovem Maria Eduarda, ou Madu (como assim era chamada), saiu de sua casa rumo à praça da pequena cidade onde morava.
Antes disso, Madu, dona de uma beleza ímpar e de uma altivez que a distinguia, deu um beijo no rosto de seu pai, um abraço em sua mãe e, com um olhar sereno, disse: “Tchau, logo estou de volta”. Ocorre que, naquela noite de carnaval, mal sabiam os pais da jovem que aquele “até logo” era na verdade um “adeus”.
Isso porque, durante as festividades carnavalescas, Madu foi alvejada por um disparo de arma de fogo, pelas costas, efetuado pelo seu ex-namorado, rapaz com quem ela acabara de terminar um relacionamento.
O rapaz foragiu, apresentou-se dias depois à autoridade policial, foi interrogado e liberado. Denunciado no mesmo ano, aguardou em liberdade até o ano de 2011 (diga-se, após uma sequência de recursos protelatórios), quando então, passados 14 anos, realizou-se o julgamento pelo Tribunal do Júri.
Condenado à pena de 18 anos de prisão, recorreu da condenação em liberdade e seus advogados interpuseram, nada mais, nada menos, do que 8 recursos, 6 deles apenas no Superior Tribunal de Justiça, sendo que um dos recursos especiais interpostos encontrava-se pendente de julgamento até quando das pesquisas deste subscritor, no ano de 2020.
Em outros termos, após 23 anos, mesmo condenado pelo Tribunal do Júri, o jovem homicida continua livre, leve e solto. Por outro lado, Madu encontra-se em um túmulo dos mais simples naquela pequena cidade, e sua família continuava a conviver com a dor de sua perda.
Esse é o retrato de diversas famílias e de vítimas brasileiras: não bastasse conviverem com a dor da perda de um ente querido, foram condenadas a conviver com a mais abjeta impunidade, em razão de um sistema judicial que não vem funcionando como deveria.
Importante mencionar que, desde a promulgação da Constituição da República Federativa de 1988, o Brasil experimentou diversas mudanças de paradigmas. Em uma delas, nos libertamos de ideias e argumentações vazias, arraigadas e em desacordo com a nossa realidade. Vivenciamos um avanço nas políticas de repressão e enfrentamento às drogas, conhecemos a história de uma mulher que, por dezenove anos, lutou para que o país tivesse uma lei que protegesse todas as demais contra agressões domésticas e experimentamos a angústia de uma mãe que teve sua filha brutalmente assassinada, tendo o caso ganhado tamanha comoção popular, que foram juntadas mais de um milhão de assinaturas, objetivando apresentar um projeto, mais tarde sancionado, que incluía o homicídio qualificado no rol de crimes hediondos.
Todavia, nesses 33 anos de estabilidade constitucional – registra-se, um dado digno de comemoração em um continente latinoamericano marcado por sucessívos golpes e quebras democráticas –, a história nem sempre foi linear, surgindo diversos percalços.
Criou-se no Brasil (denominado de garantismo hiperbólico monocular pelo atilado professor Douglas Fischer1), um absoluto ultraje à Carta Magna, aos tratados e às convenções sobre direitos humanos,pretendendo-se dar carta branca a homicidas, estupradores, surrupiadores e corruptos.
Nesse sentido, a ideia da garantia constitucional do devido processo legal, para muitos, é daquele processo que não tem fim e confunde-se o garantismo integral pregado por Luigi Ferrajoli, com a ideia de que a pessoa jamais poderá ser punida, não importa o quão grave e reprovável seja a sua conduta.
A partir dessa vertente, é necessário a nós, juristas e defensores de um garantismo integral, empreender esforços para se restabelecer os reais sentidos do que verdadeiramente sejam tais garantias processuais penais.
Além dessas inegáveis certezas, o Brasil já foi condenado em 10 oportunidades pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar, processar e punir fatos criminosos – realça-se com tintas fortes: por não punir. Em outros termos, a demora ou, não raras vezes, a ausência da resposta estatal em punir um indivíduo adequadamente, constituiu evidente proteção deficiente dos valores de nossa Carta Maior2.
Casos semelhantes ao da jovem Madu, vistos todos os dias por nós em jornais, revistas, rádios e em emissoras de TV, faz parecer que o crime compensa. Contudo, há de se ter a coragem necessária em enfrentar esse mal atávico que atinge nosso sistema judicial, tendo a Constituição da República Federativa como bússola, velando pela proteção integral dos direitos e garantias individuais e, ao mesmo tempo, devolvendo à sociedade a percepção de que devem sim acreditar nas suas instituições judiciais.
Por fim, um recado às famílias de todas “Madus” que se encontram neste exato momento clamando por justiça: embora seus entes queridos não estejam mais aqui, eles ainda falam, por meio da voz do sangue derramado. E é por eles e por vocês, sociedade de bem, que jamais perderemos nossos ideais.