Quanto mais nos enfronhamos na seara jurídica, mais convencidos ficamos de que os romanos não eram nada bobos. Talvez por isso mesmo, a língua latina acabou por constituir alicerce do direito. Lá é que fomos pescar seus princípios norteadores.
Nesse rumo, é possível que venhamos a enxergar uma luz no fim do túnel quanto à necessidade ímpar da clareza, virtude número um do texto. Justifica-se o aforismo (ou aforisma) jurídico que frequenta arrazoados de alto calibre: In claris non fit interpretatio. Em tempo: pronuncia-se “interpretacio”.
O papel da clareza é desbastar o texto, dizimar tudo quanto possa dificultar o entendimento. Eis o sentido dessa máxima latina: nas questões em que a clareza impera, cessa qualquer discussão.
De quando em quando, seja na televisão, seja nas bulas de medicamento, topamos com estes dizeres: Ao persistirem os sintomas, consulte o médico. Um tanto indecisos, alteraram, parcialmente que fosse, o enunciado: A persistirem os sintomas, consulte o médico.
A oração que encabeça o período, uma subordinada adverbial, ora traz ao + infinitivo – ao persistirem –, ora somente a preposição a, seguida de infinitivo: a persistirem. Seu sujeito é sempre “sintomas”. Daí o verbo no plural. Corretíssimo.
Ainda que mínima, a modificação confere sentido diferente a essa recomendação do Ministério da Saúde. Ao persistirem os sintomas significa quando persistirem os sintomas. De outra parte, a persistirem os sintomas encarta esta acepção: se persistirem os sintomas.
Olhos nesta oração: Ao sair, apague a luz. Ela exprime ideia de tempo. Vale por: Quando sair, apague a luz. Vindo a preposição a sozinha, abre-se uma subordinada condicional: A continuar assim, você será reprovado. Corresponde a: Se continuar assim, você será reprovado.
A linguagem do Direito reflete o que ocorre na linguagem comum. Se a construção portadora de dúvida desfila, às boas, pelo dia a dia, igualmente haverá de transitar pelo mundo das leis. Em ambas, a sintaxe do português, própria do sistema da língua, não se altera. O vocabulário é que pode agasalhar sentido específico, a depender de sua área do saber.
Vamos lá: Ao considerar essa circunstância, não há razão para deferir o pedido. Evidencia aspecto temporal: quando considerar essa circunstância… Diverge desta, com matiz de condição: A considerar essa circunstância, não há razão para deferir o pedido. Vale por: se for considerada. Ou, com mudança do tempo do verbo, caso seja considerada essa circunstância…
No cotidiano, esbarramos a toda hora com construções semelhantes a estas: Ao chegar, avise-me. / Ao sair, feche a porta. / Ao desfilarem, os recrutas proferiam palavras de ordem. / Ao pisar o solo brasileiro, o Papa se ajoelhou para beijá-lo. Nas orações iniciadas por ao, seguido de infinitivo, sobressai ideia de tempo.
De igual sorte, ainda que mais raramente, topamos com frases que indicam condição: A continuarem nas prateleiras, seus projetos não se concretizarão. / A valer este critério, meu filho será aprovado. / A prevalecer tal discussão, ninguém sairá vivo daqui. / A continuar assim, você repetirá o ano.
No princípio desta coluna, centramos foco na clareza. Com isso, quisemos acentuar que frases com esta estrutura – ao ser isso verdade / a ser isso verdade – podem semear indecisão. Dessa dificuldade não estão imunes os aplicadores do direito.
Qual é a saída? Se construções desse naipe despertam dúvida, cabe-nos, a bem da clareza, recorrer àquela que apaga de vez qualquer incerteza. Não nos esqueçamos desta verdade: o interessado, ao bater os olhos numa sentença, deve de pronto entender o que o magistrado quis dizer.
Voltemos a pisar o terreno do Ministério da Saúde. Estamos mais do que convencidos de que no fundo, no fundo, esta é a mensagem que ele pretende recomendar: se persistirem os sintomas, devemos procurar o médico.
E então, a quantas ficamos? Qual o caminho a seguir? Como sempre, convém optar por aquele que privilegia o leitor. Em se tratando do Judiciário, por aquele que vai ao encontro da parte.
Uma vez que, nesses casos, o significado implícito que buscamos transmitir é o de hipótese, a lógica e o respeito ao jurisdicionado mandam que recorramos a estas formas: Se for assim, nada podemos argumentar. / Se considerar essa circunstância, não há razão para deferir o pedido.
Em seu Guia prático de português correto, vol. 3, pergunta o Prof. Cláudio Moreno: Por que insistir no a persistirem, que, apesar de correto, vai dar muito pano para manga?
Fiquemos, portanto, com o modo de escrever que facilita a compreensão. A parte agradece. A clareza mais ainda. Em reforço, o pensamento de Celso Cunha: Ser claro é uma gentileza com o leitor. Bem isso. O professor sabe das coisas.
Basta!
Professor Germano Aleixo Filho, assessor da Presidência do Tribunal de Justiça Mato Grosso