“A normalidade é uma estrada pavimentada; é confortável de caminhar, mas nenhuma flor nasce sobre ela”, foi o que disse Van Gogh, artista que teve sua pintura e personalidade consideradas inapropriadas; com suas crises de alucinação, sofrendo com a fome, a rejeição e outras dores. “Uma nulidade ou um homem excêntrico ou desagradável”, dizia em suas cartas para seu irmão.
Escreveu, além disso, que sabia que era pintor porque pintava, pintura esta que redefiniu a arte mundial.
O que nos revela nossa autenticidade? Heidegger, em Ser e Tempo, muito falou sobre “o estar de acordo consigo mesmo”. Mas poucos o leram.
É melhor gritar acompanhado de muitos do que sussurrar sozinho, dizem. Grosso modo, Heidegger caracteriza o falatório (Gerede) como inautenticidade, discurso que determina a interpretação e a comunicação cotidiana do ser-aí, escrevia ele.
O falatório regula o que e como se fala diariamente. Estabelece e perfaz nossa escuta, nosso fazer, nossa fala e compreensão do mundo, de nós mesmos e dos outros com quem convivemos. O escutar, o falar, o compreender e o fazer se fecham, interrompem o fluxo, bloqueiam-se dentro desse falatório.
Prevalece um falar por mero falar, um escutar que não atenta verdadeiramente ao que se escutou, um fazer por fazer, sem preocupação com os fins, desatento. Esse “boato infundado” toma o nosso existir, nosso cotidiano e estranhamente nos conforta.
É assim na vida diária. Seguimos sempre a mesma receita, sofremos as mesmas dores, para resolvê-las usamos, única e exclusivamente, os mesmos medicamentos… para insônia, concentração, ansiedade, angústia, medo etc.
Da mesma forma profissionalmente: atentos aos manuais e cartilhas, aos modos já feitos, realizamos pormenorizadamente as etapas, as dicas, os itinerários (im)postos… e vamos seguindo…
Tudo repetitiva e reiteradamente. Sempre as mesmas ações e esperançosos de outros efeitos.
É importante lembrar àqueles que adoram a felicidade: uma vida sem sentido quase sempre é uma vida “feliz”.
Como escreveu Heidegger e, em sentido parecido, Kant, o homem não deve existir como um objeto nas mãos dos outros, mas como um instrumento dele mesmo. Ora, não somos xícara; esta não pode, por si, alterar-se em caneca, leiteira, bule ou café. Para “mudar o mundo” temos que mudar as gentes, mudar nossa vida diária, para alcançar nosso amor, nosso trabalho e nossas instituições.
Não é tarefa fácil, quando nos tornamos autênticos (Heidegger) recebemos algo difícil de suportar, o que exige muita responsabilidade. Viver no chavão, no clichê, na trivialidade, na generalidade, no ruído é confortável; estar consigo mesmo, falar “sozinho” é angustiante. A angústia é rastro de que estamos existindo, amigo leitor.
Van Gogh, em outra de suas cartas ao seu irmão Théo, enleva:
O que sou eu aos olhos da maioria — uma nulidade ou um homem excêntrico ou desagradável — alguém que não tem uma boa situação na sociedade e que jamais terá; enfim, um pouco menos que nada. Bom suponha que seja exatamente assim, então eu gostaria de mostrar por minha obra o que existe no coração desse tal ‘excêntrico’, desse tal nulo. Esta é a minha ambição. Ainda que frequentemente eu esteja na miséria há, contudo, em mim, uma harmonia e uma música calma e pura. Na mais pobre casinha, no mais sórdido cantinho, vejo quadros e desenhos. E meu espírito vai nesta direção por um impulso irresistível.
É preciso o espírito dessa frase. É preciso uma harmonia e uma música calma e pura.
Quando aceitamos e assumimos a responsabilidade – de nossas vidas –, a responsabilidade daquilo que nós somos, daquilo que vejo, falo, escuto e faço – de que existimos –, saímos do “refúgio” do lugar-comum e podemos mudar o mundo ou, ao menos, o nosso coração, que é livre, e podemos segui-lo.