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Policiais, bombeiros e peritos relembram operação após queda de Boing no Nortão com 154 mortos

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Sexta-feira, 29 de setembro de 2006. Era um final de tarde quente e de pouco movimento quando o telefone tocou no comando da Polícia Militar em Peixoto de Azevedo. Do outro lado da linha, atônitos funcionários de uma propriedade rural diziam ter testemunhado a queda de uma aeronave de grande porte, em uma região de mata fechada do município.

Meia hora antes, o major da PM, Márcio Thadeu da Silva Firme, comandante do policiamento do município, já havia recebido um alerta da Aeronáutica: um avião de passageiros desaparecera ao cruzar a região norte de Mato Grosso. “Quando nos chegou aquele relato, de um avião caindo em parafuso, tivemos praticamente a certeza de que se tratava da aeronave desaparecida”, relembra Freire, que hoje é coronel e responde pelo 13º Comando Regional da PM em Água Boa.

Naquele mesmo dia, por volta das 19h, a imprensa local começava a buscar o 4º Batalhão do Corpo de Bombeiros Militar em Sinop para obter informações sobre um “possível acidente” com um Boeing da companhia aérea Gol. “Começaram a ligar, perguntando se tínhamos informações sobre um acidente aéreo em uma reserva indígena. Mas não sabíamos de nada”, conta o coronel Átila Wanderley da Silva, que comandava o batalhão à época.

Anoitecia em Cuiabá quando o então perito de laboratório da Polítec, Reginaldo Rossi do Carmo, recebeu uma ligação da chefia. Especialista em análise de DNA, ele foi informado a respeito da situação e orientado a se preparar. “O que me foi dito é que a situação era muito séria e que poderíamos ser acionados a qualquer hora”.

Já passava das 22h quando o delegado Luciano Inácio da Silva, titular da antiga Gerência de Repressão a Sequestro e Investigações Especiais (hoje, GCCO), recebeu a notícia de que teria que se deslocar para a região de Peixoto de Azevedo para acompanhar e conduzir as investigações sobre o caso. “Eu não tinha conhecimento específico a respeito de aviação. Nossa unidade foi a escolhida por que tinha mais recursos, tempo e disponibilidade para se dedicar a uma investigação que tinha tudo para ser complexa”.

Na manhã seguinte, as buscas pela aeronave continuavam, mas já se sabia a causa do desaparecimento: um improvável choque, em pleno ar, entre um Boeing 737-800 da Gol, que fazia a linha Manaus-Rio de Janeiro com 154 pessoas a bordo, e um jato Embraer Legacy, que era conduzido até os Estados Unidos por uma tripulação à serviço da empresa americana ExcelAire.

A aeronave menor, mesmo com avarias na asa e no leme traseiro, conseguiu concluir com sucesso um pouso de emergência na pista do Campo de Provas Brigadeiro Velloso, a base da aeronáutica localizada na Serra do Cachimbo, no sul do Pará. A aeronave maior desapareceu dos radares.

A Aeronáutica e o Exército, que lideravam os esforços de localização de sinais do Boeing, definiram como base das operações de busca e resgate a fazenda Jarinã, vizinha à Área Indígena Capoto/Jarina e localizada a cerca de 230 quilômetros da sede do município de Peixoto de Azevedo.

Os primeiro destroços começaram a ser identificados por volta das 9h, em uma área de mata fechada distante cerca de 40 quilômetros da fazenda. Naquele momento, atendendo a um pedido de apoio da Aeronáutica, profissionais das forças de segurança de Mato Grosso já estavam a caminho do ponto base. E se preparavam para o que seria o maior desafio de suas carreiras.

“Durante a viagem à Jarinã, eu não tinha noção do que iria encontrar. Eu fui pensando sobre como proceder e sabia que tinha uma missão, como perito: fazer a coleta dos corpos que necessitariam de identificação por meio do DNA”, lembra Reginaldo Rossi, que hoje é diretor geral da Politec.

A esperança de encontrar sobreviventes, conta o delegado Luciano Inácio, já havia se desfeito antes mesmo dos primeiros destroços serem localizados. Responsável pelo primeiro inquérito aberto para a apuração do caso, ele ouviu relatos desanimadores das testemunhas. “Pela forma como se deu a queda, não havia a menor chance de alguém ter sobrevivido”.

Na fazenda, uma grande base de operações era estruturada em tempo recorde. Centenas de profissionais, de forças de segurança estaduais e federais, se dividiam em tarefas para permitir a maior eficiência no resgate, identificação e envio dos corpos para o Instituto Médico Legal de Brasília (DF), onde era feita a liberação para os familiares.

O resgate dos corpos no local da queda ficou a cargo da Aeronáutica. Em especial, dos militares do Esquadrão Aeroterrestre de Salvamento, unidade de elite conhecida como PARA-SAR.

Era na Jarinã que os profissionais das forças de Segurança Pública de Mato Grosso atuavam diretamente. O Corpo de Bombeiros, por exemplo, dava apoio principalmente ao trabalho de pré-identificação das vítimas, catalogando "pistas" que pudessem facilitar o reconhecimento.

“Nossa missão era auxiliar os necropapiloscopistas. Recebíamos todos os corpos que chegavam da selva e transportávamos até um caminhão câmara fria. Chegavam até 20 por dia. Depois era feita a retirada de um por um para verificar pertences, como relógios, anéis, pulseiras, documentos ou características, como tatuagens. Tudo era catalogado e embalado”, disse o sargento Marcos Aurélio Vieira da Silva.

Se não havia a possibilidade de encontrar sobreviventes, o objetivo de todos passou a ser a identificação de todas as 154 vítimas, como forma de amenizar o sofrimento dos familiares. “O primordial naquele momento era que ninguém ficasse na mata, naquele local ermo. Trazer todos para casa, para que os familiares pudessem, no mínimo, dar um enterro digno, uma despedida, a um ente querido”.

Um trabalho que exigia organização e conhecimento técnico, mas também a capacidade de lidar com os próprios sentimentos. A chegada do corpo de um bebê, por exemplo, ficou gravada na memória do cabo dos bombeiros, Avalone Santos da Silva, que atuou em sua pré-identificação.

“Estava praticamente intacto. Nestes momentos, a gente sentia a energia baixar um pouco, vinha uma tristeza. Era algo muito forte para todos nós. Então procurávamos observar os colegas, ver quem estava sentindo mais a carga emocional da situação e ajudar uns aos outros”.

As forças de Segurança Pública de Mato Grosso permaneceram no local por 18 dias, tendo contribuído para a identificação, no local, dos corpos de 153 vítimas da tragédia. Um mês depois, o Instituto Médico Legal de Brasília (DF) constatou que outros 11 fragmentos encontrados no local da queda eram do corpo do bancário Marcelo Paixão Lopes, 29 anos. A missão de resgate estava oficialmente encerrada.

“Foi um empenho muito forte, um trabalho em conjunto muito dedicado e bem feito. Trabalhamos arduamente e apoiamos totalmente as equipes da Aeronáutica e do Exército. Desgastante, difícil, mas pudemos ser úteis de alguma forma”, avalia o tenente coronel bombeiro Ricardo Antônio Bezerra Costa.

Para o diretor geral da Politec, Reginaldo Rossi, a experiência vivida naqueles dias ensinou muito à Segurança Pública de Mato Grosso. “Ficou a lição de que nós, profissionais de segurança, temos que estar organizados e capacitados para, quando ocorrer um evento de grande porte como este, nós podermos dar a resposta mais eficiente possível”.

A investigação aberta pelo delegado Luciano Inácio acabou interrompida por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que remeteu a competência do caso para a Justiça Federal. O relatório do inquérito da PCJ, concluído e entregue ao Ministério Público Federal apontou que o acidente foi causado por uma “soma de fatores”.

"(…) O acidente ocorreu em razão de erros na orientação do voo, perda da comunicação entre o CENTRO BRASÍLIA e o LEGACY, bem como pela inoperância do TRANSPONDER e a falência do T.C.A.S.- TRAFIC COLISION AVOIDANCE SYSTEM. A conclusão é que a soma desses fatores deu causa ao acidente", afirmou o delegado, em um trecho.

Em outubro do ano passado, os pilotos do Legacy, os norte-americanos Joseph Lepore e Jean Paul Paladino foram condenados a pena de três anos, um mês e dez dias, em regime aberto. Eles ainda não foram sequer notificados da sentença.

Dez anos depois, o delegado evita comentar a sentença, mas avalia que o foco da investigação era a identificação das causas da tragédia. “O propósito de uma investigação de acidente aéreo é descobrir o que realmente ocorreu, corrigir possíveis erros e evitar novos eventos da mesma natureza. Isso foi alcançado”.

Mas o episódio não deixou apenas marcas na trajetória profissional dos “moradores” da Jarinã. Ao longo daqueles dias, cada integrante daquela ação conjunta pôde refletir sobre a vida e sua fragilidade. Nos planos interrompidos de cada uma das vítimas, estava uma espécie de sinal de alerta. “Depois daquela experiência, passei a dar mais valor às pequenas coisas, às conversas, ao convívio com os familiares”, afirma Rossi.

Para o sargento Marcos Aurélio Vieira da Silva, o resgate demonstrou a importância da solidariedade. “O que ficou para mim é que, até mesmo depois da morte, a gente sempre precisa de alguém”.

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