De cada dez homens e mulheres que cometem crimes na capital e no interior do Estado e passam pelo sistema prisional local, apenas dois cumprem a pena e saem de lá prontos para a retomada da vida longe das drogas e da criminalidade. A informação alarmante é do Núcleo Interinstitucional de Estudos da Violência e Cidadania (NIEVICi) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Amplo contexto contribui para este problema, que ainda está longe de ser resolvido, que é a chamada reincidência no crime. A menor parte que não reincide vive com a marca do passado.
Um passado que A.S.M., 33, tenta não esquecer, mas também procura não revelar, para evitar que seja alvo de discriminação e preconceito. Filho de mãe solteira, que teve nove filhos, A. tem uma história triste de vida. Aos nove anos começou usar maconha e cheirar cola, no bairro São Mateus, onde nasceu e cresceu. O bairro registra alto índice de criminalidade. “Usava com os colegas, por aí, na rua, no campo de futebol, na beira do rio”, detalha. Conheceu o sistema prisional para adolescentes infratores aos 12 anos. “Puxei cadeia por causa de roubo, fiquei dois meses e me soltaram”.
Depois disso, foi apreendido várias vezes, não se lembra quantas. Após os 18 anos, também foi preso e solto várias vezes. “Na delegacia Municipal, em Várzea Grande, no Capão Grande, no Carumbé”. Há 10 anos, tomou talvez a decisão mais importante da vida. Parou de usar drogas. Há cinco anos saiu do Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC). Passou pelo regime semiaberto, usando tornozeleira eletrônica e dormindo na cela, e há dois meses tirou o equipamento, cumprindo agora a liberdade condicional, como ele mesmo diz, o tempo inteiro “na rua”. Tem namorada, mas não contou para ela tudo que passou. Melhor assim, na visão dele, para evitar problema. Está inserido em um programa importante de apoio do Estado nesta fase, que é o Nova Chance.
O programa Fundação Nova Chance (Funac), da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), criado em 2008, atende atualmente 243 presos em regime fechado e 142 do semiaberto ou condicional.
Presidente da Funac, Cíntia Selhorst, que trabalha com reinserção há 21 anos, afirma que, levando em conta os homens e mulheres que ela já atendeu, é sim possível orientá-los para que repensem a vida e tomem outro rumo, diferente da criminalidade. “O emprego é apenas um eixo norteador, precisam ter atendimento holístico, saúde, qualificação profissional e apoio psicológico e emocional, porque são seres em situação de vulnerabilidade”.
Cíntia afirma que não tem como separar as drogas da criminalidade. São elas que empurram a maioria para o abismo do crime. “A política antidrogas não dá conta deste problema e isso é um fato agravante”, ressalta. Ela diz ainda que a superlotação no sistema prisional e a reincidência no crime levantam perguntas que a sociedade não pode deixar de tentar responder. “Temos que, com muita humildade, reconhecer que algo deu erro, porque não está funcionando”. Também ressalta que esta é uma questão de interesse a todos, porque a sensação de insegurança já chegou a níveis alarmantes, ao ponto dos moradores não terem mais a coragem de colocar a cadeira para fora de casa, para conversar e apreciar a noite.
T.I. também já viveu o inferno da criminalidade e tenta sair disso. Usuário de maconha e pasta-base de cocaína, já com dois meses de abstinência, chega aos 26 anos após ser preso duas vezes por tráfico de entorpecente, ainda com vida, diferente de outros com quem conviveu na infância e na adolescência, que acabaram morrendo. Casado, pai de três filhos, com mulheres anteriores, tem o apoio da atual mulher, que também está tentando deixar o vício, e mãe, uma faxineira de 60 anos, que durante a semana cuida das crianças para que estudem. O nome da mãe dele é dona Ana. Ela fez de tudo para o filho “se regenerar”, como diz, e agora está feliz que ele está trabalhando. “Quando fez 16 anos começou a usar drogas. Continuou calado, como já era desde menino, mas a minha aflição como mãe aumentou, sempre preocupada”. A mulher pede ajuda a quem puder contribuir com comida e outras necessidades dos netos. (65-93427620).Para o sociólogo Inácio Werner, do Fórum Estadual de Direitos Humanos, um ex-presidiário “tem direito a viver, em liberdade, como qualquer outro cidadão, já tendo pago sua conta no Judiciário. Se para alguém que nunca sofreu essas pechas da sociedade está difícil, imagina para quem é marcado”, compara. Segundo ele, ainda que isso esteja começando a mudar, quem está nos presídios hoje em dia ainda é maioria da classe baixa e negra, que teve acesso a poucos ou nenhum dos direitos básicos.
O professor Naldson Ramos, do Núcleo Interinstitucional de Estudos da Violência e da Cidadania (Nievici) da UFMT, não alivia e diz que o sistema prisional de Mato Grosso “não recupera ninguém”. É falido, diz ele.
Primeiro porque é superlotado e as pessoas não encontram condições dignas para cumprir a pena. Segundo, porque lá dentro um comando hierárquico negativo, que forma verdadeiros “exércitos” com compromisso assumido de lá dentro ou quando saírem cumprirem ordens criminais. “Certa vez recebi uma ligação de uma mãe, me pedindo pelo amor de Deus socorro, porque o filho, que já havia matado uma pessoa aqui fora, em situação de conflito, lá dentro estava ficando pior”, ilustra o professor pesquisador. O rapaz estava afirmando à mãe que agora sim crescia dentro dele um desejo de revanche, por tudo que estava passando na prisão, mostrando ter intenção de ser mais um reincidente. Naldson vê este cenário com pessimismo. “Não vejo nada de concreto, significativo, para mudar esta situação”, vaticina.
O juiz da Segunda Vara Criminal de Cuiabá (de Execuções Penais), Geraldo Fernandes Fidelis Neto, é mais otimista. Com o devido apoio, acredita que apenas dois de 10 presidiários voltariam a reincidir. A avaliação do uso de tornozeleiras eletrônicas, implantadas há dois anos, mostra que poucos quebram as regras, pelo menos enquanto estão monitorados. Ele também vê o crime como uma falha social. “Em cada uma destas histórias, pode ver que houve erro lá atrás. Os pobres que vão para criminalidade não têm direitos básicos. Já aos de classe média e alta também pode ter faltado algo importante, valores”.