O Ministério Público Federal em Barra do Garças ajuizou Ação Civil Pública pedindo para suspender o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica (UHE) Boaventura, localizada no Rio das Garças, próximo aos municípios de General Carneiro, Barra do Garças e Pontal do Araguaia, na região do Araguaia em Mato Grosso. Um dos motivos é o impacto “negativo e irreversível”, nas fases de construção, enchimento e operação do empreendimento, sobre a população de botos que habitam os rios Garças e Araguaia. Estudos científicos apontaram que o boto encontrado na região trata-se de uma nova espécie, o “Boto do Araguaia” ou “Inia araguaiaensis”, a qual poderá desaparecer com os empreendimentos hidrelétricos na bacia do Rio Araguaia. Isto porque a população dos mamíferos aquáticos é estimada entre 600 a mil indivíduos. A descoberta científica da nova espécie se deu em 2014, e é considerada uma das mais relevantes no Brasil, pois trata-se da identificação da quinta espécie de golfinho de água doce da história, sendo que a última havia sido identificada em 1919. “Além do mais, os golfinhos de água doce são considerados um dos seres vivos mais raros do planeta. O Poder Executivo Federal, do qual o Ibama faz parte, não pode ignorar a nova espécie”, reforça o procurador da República em Barra do Garças, Everton Pereira Aguiar Araújo.
Para tanto, o MPF em Barra também requer na ação o deferimento da medida liminar pleiteada para que seja determinada a suspensão imediata do licenciamento ambiental da UHE Boaventura perante a Sema, até que seja proferida decisão final, e no mérito requer que seja declarada a atribuição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) para o licenciamento do empreendimento, com a consequente anulação dos atos já praticados, por falta de competência administrativa da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso (Sema) para o licenciamento em questão. Até mesmo porque a questão da existência de uma nova espécie de botos não teve o devido enfrentamento no processo de licenciamento ambiental junto a Sema. No Estudo de Impacto Ambiental apresentado pelo empreendedor é apenas admitida a possibilidade da nova espécie, “no entanto, por suposta falta de ‘evidências mais fortes’, apontou-se que a nova categoria de espécie deve ser desconsiderada no momento”.
Ao propor a Ação Civil Pública, o procurador Everton Aguiar destacou a possibilidade de responsabilização internacional da República Federativa do Brasil pela violação de normas internacionais de proteção da biodiversidade, além disso também levou em consideração os impactos que irão incorrer sobre as Terras Indígenas Merure (Bororo) e São Marcos (Xavante) com a instalação da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santo Antônio das Garças e UHE Boaventura. De acordo com Everton Aguiar, ao serem analisados juntos, os empreendimentos impactam diretamente na TI Merure, assim como geram consequências graves à bacia hidrográfica do Rio Araguaia. “No entanto, tal processo de licenciamento ‘conjunto’ foi arquivado, adotando-se a estratégia de se realizar procedimentos licitatórios em separado, iniciando-se pela UHE Boaventura. Tal desmembramento tornou-se prejudicial à lisura do licenciamento, pois possibilitou o afastamento dos danos cumulativos dos dois empreendimentos, em especial sobre a Terra Indígena Merure, isto porque levando-se em consideração apenas a UHE, tanto a área de barramento quanto de alagamento, distanciaram-se (artificiosamente) das áreas indígenas”, alerta Aguiar no documento.
Independente da distância da Terra Ingíena do local de barramento e alagamento, a comunidade indígena Bororo será afetada diretamente pelo empreendimento, já que possuem relação direta de subsistência com o Rio das Garças, e estudos indicam que com a instalação da UHE haverá modificação na fauna aquática. Mas, além da relação de sobrevivência, os indígenas da TI Merure possuem também forte vínculo cultural e cosmológico com o Rio das Garças. No teor da ACP, é citado o depoimento dado por um representante Bororo durante a audiência pública realizada em Barra, em 2016. “O Rio das Garças para os indígenas é um espírito, por que lá mora o espírito das águas, o boto também é um espírito para nós. A lagoa que também é alimentada pelo Rio das Garças é um cemitério para nós, porque lá foram enterrados nossos ancestrais e destruí-la fere nossos sentimentos e nosso modo de ser, fazer e viver. Nessa lagoa é onde fazemos nossos rituais tradicionais e culturais. Se mudarem o curso da água pode ser que esse rio seque. É a mesma coisa que destruir um túmulo para nós. É nos ferir. Os impactos indiretos que falam os empreendedores, não são indiretos, mas sim, diretos para nós, porque todo o nosso sistema organizacional está ligado com o nosso parente rio, nossos irmãos árvores, e ainda nossos parentes, o vento, o sol e outros. Se colocarem uma hidrelétrica no rio, estarão aprisionando um parente nosso, dessa forma o rio tem que estar livre e com saúde para nós podermos fazer uma boa pescaria, uma boa caçada e coletar nossas ervas medicinais, na beira do rio. Todos os rios que estão em nosso território têm um significado, um ser e um espírito. Portanto, o impacto é direto, não existe impacto indireto”, disse o indígena Adriano, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
O MPF cita ainda os impactos à bacia do Rio Araguaia, já que o Rio das Garças é um dos seus principais afluentes. A UHE Boaventura, além de situar a poucos quilômetros da confluência do Rio das Garças com o Rio Araguaia, é apenas um dos 13 aproveitamentos hidroelétricos propostos para o Rio das Garças, e que devem ser considerados pelo órgão licenciador por meio da análise de danos cumulativos e sinérgicos.
“Assim, resta claro que o a instalação da UHE Boaventura não é fenômeno isolado que cause um impacto apenas no Rio das Garças, mas sim parte de uma Política Energética do Governo Federal pela qual se pretende a instalação de mais de dez hidrelétricas ao longo do leio do Rio das Garças, importante afluente do rio Araguaia”, enfatizou o procurador.
A informação é da assessoria do MPF.