Mais de 140 harpias, a maior ave de rapina do Brasil, foram mortas em um prazo de dois anos apenas pela curiosidade de moradores da região Norte de Mato Grosso. A constatação está em um estudo publicado, este mês, no periódico internacional científico Animal Conservation, que foi conduzido pelo biólogo Everton Miranda, no âmbito de um programa de doutorado da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul.
O estudo foi realizado em 2016 e teve coautoria de Colleen T. Downs, também pesquisadora da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul, e Carlos Peres, da University of East Anglia, do Reino Unido. A pesquisa identificou moradores da região que já haviam matado uma harpia nos dois anteriores, ou seja, 2014 e 2015, para tentar entender o motivo dos abates. Inicialmente, os pesquisadores acreditavam que a maioria das mortes estava relacionada a retaliações contra a harpia pela predação de animais domésticos. No entanto, a constatação foi de que a maioria das mortes se deu apenas por “curiosidade” do abatedor.
“Uma das principais constatações é de que a maioria dos abates foi fútil. Não foram relacionados diretamente à predação de animais domésticos, em que seria compreensível, apesar de não justificável, muito menos legal. Mas a maior parte se referia não a uma retaliação ou prevenção. A maior parte da população entrevistada nem sequer acredita que a harpia é relevante na predação de animais domésticos. Porém, muito frequentemente, as pessoas abatem por motivos fúteis. Eles mesmo disseram que era para ver a ave mais de perto, pois nunca tinham visto um ‘gavião’ deste tamanho. Por ser uma população migrada, que não conhece a espécie, frequentemente a abatem por curiosidade”, disse Everton, ao Só Notícias.
Segundo a pesquisa, das 181 harpias mortas pela população local no período de dois anos, 148 (80,5%) foram abatidas por curiosidade. Os outros 33 abates estavam relacionados a retaliações por predação de animais domésticos, como porcos, galinhas, cães e gatos. A pesquisa ouviu moradores de cidades como Aripuanã, Colniza, Cotriguaçu, Juruena, Nova Bandeirantes, Apiacás e Alta Floresta. A perspectiva, segundo Everton, é de que a harpia desapareça dessa região no futuro. Além dos abates, o pesquisador cita outros fatores que ameaçam a espécie.
“A gente tem dois problemas graves, que no caso é a perda de habitat por causa da expansão da pecuária na Amazônia, e do outro a degradação das árvores que são de uso madeireiro. Além disso, a gente conta com fatores climáticos. O Sul da Amazônia está ficando seco muito depressa. Nossa região conta hoje com aumento de estação de seca de 1.8 dia por ano. Ou seja, a cada dez anos, a estação de seca fica duas semanas e meia mais comprida. Isso resulta em uma redução drástica do habitat dessa espécie aqui no Norte de Mato Grosso. Mesmo no melhor dos cenários, as chances são de que a região não abrigue a população de harpias no futuro”.
Recentemente, um estudo feito por pesquisadores do campus de Alta Floresta da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), em colaboração com cientistas da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e instituições de Israel, Inglaterra e Estados Unidos, mostrou que a maior águia do mundo já perdeu mais de 40% de seu habitat. Atualmente, a densidade na região Norte de Mato Grosso é de 2 a 5 ninhos, com 8 a 12 indivíduos, a cada 100km². Em áreas com mais de 70% de desmatamento, porém, as aves não conseguem sobreviver.
Para tentar reverter o quadro que ameaça a espécie, Everton desenvolve um trabalho voltado para o turismo de observação das harpias, realizado por uma empresa multinacional em parceria com entidades e a ONF Brasil, ligada a uma estatal francesa. Segundo ele, o projeto envolve recompensa em dinheiro para localização e manutenção dos ninhos da ave nas propriedades rurais. A metodologia, de acordo com o pesquisador, já tem apresentado resultados positivos.
“No momento imediatamente posterior à pesquisa, passamos a implementar o turismo em algumas propriedades do Norte de Mato Grosso. E essa metodologia conta muito com a mão de obra local para funcionar. A gente oferece uma recompensa de 500 reais para uma pessoa que encontrar um ninho de harpia, que já é um mecanismo de injetar benefícios concretos para essas comunidades locais. Adicionalmente, a gente oferece uma participação de 20 dólares por turista por dia para o dono da terra, que assina um contrato se comprometendo a não fazer uma série de atividades nocivas às harpias. Com essa metodologia, a gente observou uma redução forte nas taxas de abate”, comentou o pesquisador.
Em massa, a harpia é considerada a maior águia do mundo. O animal pode chegar a 9 quilos e 2,2 metros de envergadura.