Sem treinamento adequado para integrar o quadro da Polícia Militar, homens responsáveis pela segurança da sociedade também não contam com cursos de reciclagem. Os policiais interessados em aprimorar os conhecimentos têm que arcar com os custos das qualificações. Esta é a realidade apontada pela Associação de Cabos e Soldados do Estado, que relata ainda desvalorização profissional ao longo dos anos. O reflexo é sentido pela população.
Dados da Ouvidoria Geral da Polícia de Mato Grosso apontam que 24,6% das reclamações registradas nos últimos três anos são relacionadas à forma de abordagem policial. Dos 3.579 atendimentos, 883 são referentes a agressões promovidas pela PM durante contato com o cidadão.
A ineficiência do curso de formação ofertado a quem passa no concurso, especialmente quanto ao manuseio da arma de fogo, foi apontada pelo soldado Leandro Almeida de Souza, 23, como motivo para o desfecho desastroso da ação que resultou na morte de duas pessoas ao tentar evitar um assalto. O policial foi responsável por atirar e matar o colega de farda Danilo César Fernandes Rodrigues, 27, e a atendente Karina Fernandes Gomes, 19, em fevereiro de 2014 durante tentativa de roubo na Casa de Câmbio. As declarações foram feitas na audiência de Instrução e julgamento do caso.
Após passar no concurso, os futuros PMs entram no curso de formação que é visto como insuficiente para o preparo de quem vai atuar em situação de stress, enfrentando adversidades e com a missão de proteger o cidadão e a si próprio.
Ouvidor geral da Polícia, pastor Teobaldo Witer destaca que além de ter um tempo reduzido, o curso foca mais no respeito a hierarquia do comando, deixando de concentrar no respeito e proteção à população. “Normalmente, são pessoas jovens que não recebem um preparo correto, ganham uma arma e o poder para abordar qualquer pessoa. Muitos saem do papel de reprimido e assumem a postura de repressor, diante do poder que recebem”.
Witer avalia ainda que além do currículo curto, os policiais são ensinados a irem para a rua e resolver todos os problemas, sem expressar emoções. “O resultado disso é tratarem todos como bandidos. O que a nossa Polícia sabe fazer, infelizmente, é bater, mostrar armas nas abordagens, com frequência chegam de forma truculenta e resolvem tudo na força. A abordagem no Brasil por si só já é violenta”. Para Witer, o simples fato de não cobrar formação específica para fazer parte da Corporação já seria motivo para intensificar a educação dos policiais.
Relata que qualquer pessoa com Ensino Médio integra as fileiras da PM. Avalia que para ter uma polícia mais humanizada seria importante a exigência de uma formação acadêmica, com oferta de preparo psicológico, formal e proteção própria.
Integrando a PM há 13 anos, o vice-presidente da Associação de Cabos e Soldados do Estado, Joelson Fernandes do Amaral aponta que o único treinamento oferecido é para quem entra. “Os tiros que dei como forma de me aperfeiçoar depois do curso foram por minha conta. Eu procuro o stand e pago pelo serviço. Faço como forma de proteger a minha vida, já que na profissão estou exposto”.
Amaral frisa que os treinamentos constantes são oferecidos somente para as tropas especializadas, mas os responsáveis pelo policiamento ordinário das ruas, que atuam com a população, não têm a mesma oportunidade de qualificação. Pontua que diariamente, ao assumirem o serviço, os policiais recebem as orientações do comando, porém o procedimento não tem a mesma eficiência de um treinamento contínuo. “Isso é falho e faz parte da cultura do Estado perante a PM. Não é uma realidade atual, há muito tempo sofremos com essa situação”.
O sindicalista destaca que outros problemas graves fazem parte da rotina dos policiais, como a falta de materiais para trabalho e a remuneração desestimulante. Conta que a Polícia oferece coletes vencidos e em número inferior à quantidade de homens, além de armas obsoletas. “Não tem colete para todos e muitos ainda usam revólver 38, quando o correto é a pistola ponto 40. A chance de ocorrer um acidente com um 38 é muito maior que usando a pistola”.
Fernandes lembra que a Polícia é acionada para resolver todos os tipos de problemas, mas não recebe respaldo para isso. “Além de cuidar de todos, também precisamos cuidar de nós mesmos e não somos reconhecidos pelos serviços prestados. Não temos nem mesmo direito à greve para reivindicar o que é direito de todo cidadão”.
Reclama da atual tentativa do governo em parcelar o aumento salarial e acredita que isso vai refletir na evasão policial. Em 2013, 280 policiais deixaram a PM por falta de perspectiva de crescimento salarial e profissional. No ano passado, quando foi aprovado o reajuste nos rendimentos, o abandono caiu para 180 casos. “Com certeza a evasão vai subir.
Hoje, a tropa está muito desmotivada. O psicológico do homem precisa estar bem quando deixa sua família para defender a sociedade. E hoje não temos sequer tranquilidade financeira”.
Advogado da Associação, Carlos Odorico Dorileo Rosa Júnior relata que não são raros processos envolvendo policiais diante da falta de preparo na formação. Pontua que além do treinamento, muitos casos ocorrem pela falta de experiência profissional, como no caso do Leandro. Para ele, o treinamento continuado é indispensável para evitar tragédias como a da Casa de Câmbio.
O advogado comenta ainda a escolha dos profissionais que atuam na segurança das autoridades do Estado. São homens do alto escalão. “Por que para proteger uma autoridade tem que ser treinado e para atuar junto a sociedade não?”. Rosa avalia que as últimas turmas que entraram para compor o quadro da PM foram uma tentativa de maquiar a segurança pública do Estado. Cita que o governo estava preocupado em colocar quantidade nas ruas e não se importou com qualidade de curso. Assim como Fernandes, ele destaca a desvalorização deste profissional que não recebe salário condizente com a responsabilidade que tem e nem é contemplado com materiais.
Outro lado – a comandante da Escola Superior de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da PM, Ridalva Reis de Souza desta que a turma que atualmente se prepara para assumir o serviço conta com curso de 2.100 horas/ aula e os alunos saem formados como tecnólogo em Segurança Pública. Pontua que a qualificação ocorre na teoria e na prática de forma simultânea e o curso permite uma formação mais sólida com aulas robustas.
A coronel afirma que a iniciativa garante um profissional mais preparado nas ruas e destaca que o policial na rua precisa estar muito bem treinado, uma vez que vive situações de conflitos diversos e precisa tomar decisões em um mundo real em frações de segundos.
“Somos cobrados a todo minuto e o policial não tem o direito de errar perante aos olhos do próximo. Podemos acertar inúmeras vezes, mas se errarmos, o problema está posto”.
Quanto à qualificação no decorrer da carreira, a comandante afirma que existem cursos, mas relata que nem todos os homens da corporação foram contemplados ainda com o benefício.