No dia 29 de setembro, o Brasil chorou. Hoje, um mês e meio depois do acidente com o Boeing da Gol, o luto ainda acompanha as famílias dos passageiros e tripulantes do último vôo 1907. A tristeza aos poucos dará lugar naturalmente à saudade. Mas para um grupo de 12 pessoas de Brasília não há saudade, somente dor. São 11 homens e uma mulher – os 12 controladores de vôo que monitoravam o espaço aéreo no Cindacta I, em Brasília, por onde o Legacy passou. Dez deles, em algum momento, tiveram envolvimento direto com o jato da Embraer. Por isso, são peças cruciais na investigação das causas do acidente e prestarão depoimento à Polícia Federal em breve. À DINHEIRO, dois controladores, entre eles o último a tentar contato com o Legacy, revelaram na semana passada os momentos de agonia que viveram naquela sexta-feira e como ficou o CTA (Controle de Tráfego Aéreo) minutos depois do acidente. Ali começava um drama que tomou conta de suas vidas nos últimos 40 dias e extrapolou para a chamada operação tartaruga que levou o caos aos aeroportos.
Eram cerca de 17h, naquela sexta-feira. A rotina do CTA era normal, o que não significa que o ambiente estivesse tranqüilo. Os controladores devem manter os olhos grudados na tela de controle e fichas de progressão de vôo ao lado do monitor. Por duas horas seguidas, virar a cabeça para o lado é arriscado, levantar, então, é proibido. Lá estavam, todos eles, nos seus postos. Quatro no controle, quatro em descanso e os demais em outras tarefas. “De repente o vôo da Gol desapareceu”, conta o sargento da Aeronáutica, que nessa reportagem será chamado de Pedro, para preservá-lo. Como assim desapareceu?
“Naquela região não há visualização-radar. Estávamos esperando o Gol entrar em contato. Ele não entrou. Antes, eu já tinha tentado sete contatos com o Legacy para avisar que o transponder estava desligado e que ele entraria em uma região não-radar. Não consegui. Ligamos para o controle de Manaus (Cindacta IV) porque queríamos saber se o Gol tinha entrado em contato com eles. Mas ninguém sabia. Pelo horário, ele deveria ter saído do controle do Cindacta IV e deveria estar no nosso. O problema é que ele não tinha entrado. Até aquele momento, estávamos em uma situação de incerteza. Pelo regulamento, somente depois de 30 minutos sem a localização da aeronave é que passamos para o estado de alerta. Nesse meio tempo, soubemos que o Legacy tinha feito um pouso forçado em Cachimbo (Serra do Cachimbo – MT). Até aí tudo bem. Na nossa profissão, um pouso forçado não é motivo para desespero. Logo depois fomos avisados, por Manaus, que o piloto do Legacy tinha batido em alguma coisa na descida. Não sabia o que era. De repente a nossa ficha caiu. E a pergunta passou a ser: como? Como, se ele estava no nível 360 e o vôo da Gol no 370? Na hora, achávamos que o Legacy teria subido para 380, porque o Plano de Vôo dele previa a mudança em Teres e, por algum problema, ele desceu. O desespero tomou conta de todo mundo. Só conseguíamos pensar no acidente com mais de 150 passageiros. Tínhamos colegas lá dentro. Nós vivemos sabendo que essa possibilidade existe, mas o nosso trabalho é evitá-la, então, em questão de segundos, nosso maior pesadelo se tornava realidade.”
Uma hora depois, por volta das 18h, uma psicóloga foi chamada e uma equipe que estava de folga acionada. Essa nova equipe assumiria o trabalho das 19h às 22h, quando o turno oficialmente terminaria. Os 12 foram tratados em grupo e mandados para casa. Nesse momento começa a segunda parte da história. Desde então, isolados em casa, nenhum controlador consegue dormir sem ajuda de remédios. O sargento Isaac – também nome fictício para preservar a verdadeira identidade do outro controlador ouvido – toma um miligrama do tarja-preta lorazepan por noite.
“Sabe quantos quilos eu já perdi? Cinco. Saio de casa às 8h da manhã e não chego antes de meia-noite. Fico pensando nos cerca de três minutos que aquelas pessoas sofreram. As imagens do acidente passam como um filme em minha cabeça. A mãe que foi encontrada abraçada ao filho, algumas pessoas com as máscaras de oxigênio, a mão rígida do piloto agarrada ao manche. Ele morreu lutando contra a aeronave”, conta Isaac, com o olhar marejado. “Meu casamento está por um fio. A minha mulher não sabe o que dizer. Só fica calada.”
Mesmo assim, Isaac não pretende largar a profissão e espera poder voltar logo ao CTA. Pedro, não. Aos 22 anos, ele quer voltar para a casa dos pais, que não moram em Brasília.
“Estou há três anos em Brasília e não pretendo ficar mais tempo. Também não vou pedir baixa. Quero continuar como controlador, mas em outro lugar. Ainda tenho muita coisa para pensar e decidir. Por enquanto, estou ficando na casa de amigos, todos militares. Meus pais ainda não sabem que eu estou afastado por um atestado psiquiátrico. Eu não quero preocupá-los. Ainda tenho pesadelos, não consigo dormir direito. Nem comer é fácil. Não estou saindo de casa e a minha vida social acabou.”
Um consolo veio na quarta-feira 8, quando os primeiros exames das caixas-pretas mostraram que não houve pânico nem tumulto. A princípio, depois do choque, o avião caiu verticalmente e todos perderam os sentidos, o que, pelo menos, teria reduzido o sofrimento a bordo.
Enquanto Pedro, Isaac e os outros dez controladores tiveram acompanhamento psicológico, os demais continuaram trabalhando, em dobro, para cumprir seu turno e o dos colegas afastados. O estresse dobrou na sala, justamente onde trabalhar sob estresse significa colocar vidas em risco. Nos intervalos de duas horas para descanso, controladores se rendiam ao choro para aliviar a tensão, escondidos atrás dos armários. Sem apoio psicológico e diante de toda pressão extra, um sargento de 33 anos teve um acidente vascular cerebral (AVC) dentro do CTA e outros 20 entraram com atestados médicos. Em pouco tempo, onde antes trabalhavam 12 pessoas (dez controladores e dois supervisores) por turno, só havia quatro, sendo que cada dupla se intercala no controle. Isso explicaria o colapso nos aeroportos às vésperas do feriado. Faltou pessoal, apoio psicológico e um plano de contingência. Na Suíça, por exemplo, quando houve o acidente sobre o Lago Constance – choque entre um Tupolev russo e um Boeing 757, que matou 45 crianças – , o governo reduziu em 40% o tráfego aéreo depois de afastar os controladores.
A fragilidade do sistema foi conferida in loco pelo ministro da Defesa, Waldir Pires, que foi ao CTA conversar com os controladores logo depois do colapso. “Os controladores de vôo não estão passando por uma crise operacional, mas por uma crise emocional”, afirmou em seguida, defendendo a passagem do controle aéreo para esferas civis do governo. As intervenções geraram uma crise no Comando da Aeronáutica. Irritado, o tenente-brigadeiro-do-ar Luiz Carlos Bueno ameaçou entregar o cargo. O presidente Lula retirou os ministros civis da negociação, enquanto não se decide se o controle aéreo será desmilitarizado.
Como os controladores são militares, eles não podem formar sindicato, portanto, são representados por uma associação. É essa entidade que defende a desmilitarização do controle aéreo da aviação geral aos moldes do que ocorreu em Portugal há 30 anos e está sendo feita na Argentina. Atualmente, há uma rachadura na categoria. Enquanto os cerca de 2,2 mil controladores recebem o soldo de sargento, há cerca de 400 civis, comissionados, com salário bem maior. “Precisamos de um plano de carreira”, defende Wellington Rodrigues, presidente da associação. “O controlador não pode sofrer mais pressão do que o trabalho exige.” Desde 2003, o Ministério da Defesa sabe que os controladores de vôo estão trabalhando no limite. Um documento emitido pelo Conselho de Aviação Civil alertava para problemas com os controladores de vôo devido ao corte de verbas. Além disso, o informativo de setembro de 2006 da Associação Brasileira de Controladores de Tráfego Aéreo, publicado antes do acidente, chama a atenção dos controladores para que estejam sempre atentos e com a legislação “na ponta da língua”. “Até o momento em que esse texto está sendo escrito, graças a Deus que nenhum acidente aeronáutico aconteceu”, diz o informativo. Hoje, infelizmente, este texto seria diferente.