Semana passada, discutia-se na Câmara Federal o voto na prisão. A Justiça Eleitoral garante que tem condições de colher votos de presos provisórios. Deputados, no entanto, acossados pela opinião pública para votarem o projeto ficha-limpa, argumentaram, sobre o voto de preso: "Se o candidato é obrigado a ter ter ficha limpa, será que o eleitor pode ser ficha-suja? Afinal, quem está preso é um evidente ficha-suja". Acho que é uma boa questão. Quantos eleitores são fichas-sujas? Fico me perguntando se merece votar o eleitor que vende o voto, de alguma forma. E me pergunto se é ficha-limpa o eleitor que sonega – que desfruta de serviços públicos pagos pelos outros, mas não comparece com a sua parte de impostos.
E aí a lista vai longe: quantos eleitores constroem devastando a natureza e sem alvará? Quantos dirigem bêbedos, pondo em risco a vida alheia? Quantos desviam algum tipo de material da empresa em que trabalham? Quantos pagam propina? Quantos cometem toda a sorte de infrações contra o código de postura da cidade onde moram: jogam lixo, fazem barulho, destroem bens de uso coletivo? Na realidade, esses não somente votam, como elegem seus representantes. Pelo número de representantes fichas-sujas, deduz-se que o eleitorado deles é bem numeroso. E é por causa desses eleitores que vivemos tão mal neste país.
Criticamos nossos representantes, denunciamos nossos governantes, mas sempre que há uma operação policial descobrindo corrupção na área municipal, estadual ou federal, nunca detentores de mandatos ou funcionários estão sós. Sempre há o privado metido nisso, também partilhando do botim. Sérgio Buarque de Hollanda, no capítulo "O Homem Gentil", em que analisa "As Raízes do Brasil", mostra que somos avessos à regras, às formalidades. Nos 60 anos que decorreram dessa constatação, nos aprofundamos e hoje parece que somos avessos à lei e alegres foliões da desordem. E não existem sinais de que possamos nos tornar uma sociedade mais séria, mais austera, mais organizada. Ao contrário, os laços estão cada vez mais lassos.
E encaramos isso com a maior naturalidade, sem medo de repressão. O líder do governo, senador Romero Jucá, disse que o projeto ficha-limpa não é prioridade para o governo. Depois se soube que ele responde, no Supremo, a processo que tramita em segredo de justiça, por falsidade ideológica, crime contra o patrimônio público, apropriação indébita da Previdência e crime contra a ordem tributária. Homem de sorte: outro processo, por fraude no sistema financeiro, fora arquivado em 2008 por prescrição. Pelo jeito, ele é uma pequena amostra da multidão que sobrevive neste regime de impunidade aos fichas-sujas. Agora ele promete "aperfeiçoar" o projeto no Senado. Pelo jeito, os eleitores fichas-limpas vão perder esse confronto, em que estão em aparente minoria.