Os jornais do hemisfério norte que noticiaram, sempre com foto, a derrubada do helicóptero da polícia no Rio de Janeiro, fizeram questão de ressaltar que o fato aconteceu na cidade olímpica. Desde o momento em que foi anunciada a escolha do Rio, a cidade recebeu essa responsabilidade: a de ser a sede da Olimpíada de 2016. Não sei se o Rio vai conseguir ser uma cidade segura até aquele ano. O jornalista Jon Lee Anderson, autor de uma biografia de Che Guevara, escreveu em O Globo: “O Rio pode até se tornar uma cidade governada pelo domínio da lei, em vez de pela criminalidade descontrolada. No fim das contas, isso sim seria um feito maravilhoso, sem dúvida melhor, até, do que sediar as Olimpíadas.”
Por isso errei feio na previsão da cidade que seria a escolhida. Apostei em Chicago, pela organização urbana. E deixei o Rio por último. Deu o contrário: Rio por último, Rio melhor. O fotoshop caprichado do Rio convenceu o comitê olímpico. E agora a cidade vai ter que tornar realidade a ficção. A vida do Rio vai ter que imitar a arte de convencer. Vai ser difícil esconder o estampido das metralhadoras que derrubaram o helicóptero ou a luz das balas traçantes que descem dos morros todas as noites. Já cobri guerra em Beirute, no sangrento ano de 1982; acordava sem saber se veria o pôr-do-sol; mas pelo menos sabia onde estava o perigo. No Rio, ninguém sabe quando e onde vai acontecer.
Agora foi em torno do bairro de classe média da Tijuca, também perto da Vila Isabel, de Noel. Tem sido no Leme, em Copacabana, no Centro, em Ipanema, no Leblon, em São Conrado. O crime fecha ruas e lojas; invade prédios – o último foi no Arpoador; assalta, seqüestra, mata e fere. E é sustentado por uma multidão de usuários que pagam pela droga o preço das armas e das balas perdidas. Zuenir Ventura, no seu Minhas Histórias dos Outros, cita o que escrevera em 1980 como se fosse hoje, só para demonstrar como a cada ano o crime avançou mais e a população ficou mais refém. A última batalha, a do Morro dos Macacos, é apenas mais uma nessa guerra que já dura 30 anos e tem a lei e a ordem como perdedoras.
A cultura local facilita as coisas para o crime. Começou com o bicheiro-protetor-empregador. Um fora-da-lei com quem a sociedade convive e que a sociedade sustenta. O guarda que vai multar quem estaciona sobre a calçada é vaiado; trouxa é quem espera o pedestre passar pela faixa de segurança. O esperto, o malandro, são figuras que orgulham a cidade, especializada em jeitinho. Ninguém se importa com o mau-cheiro, o lixo, o esgoto no mar, a bagunça no trânsito, o barulho, porque, afinal, com uma natureza daquelas, a vocação é divertir-se. Esse é o estereótipo que se faz, injustiçando o carioca civilizado, urbanizado, que quer produzir, quer viver bem numa cidade organizada, mas se debate num mar de indiferença e cumplicidade com a desordem.
O prefeito Eduardo Paes reconhece isso. Me disse que não basta enquadrar a cidade na lei; é preciso mudar a cultura que convive com a desordem. Um desafio olímpico: o Rio terá seis anos para mudar o que construiu em quatro séculos.