A utilização de potes de argila, muito parecidos com aqueles usados para armazenar água potável nas cozinhas de fazendas e cidades do interior, está sendo validada como tecnologia social para irrigação de baixo custo e uso racional dos recursos hídricos no Brasil e na África. Por meio de uma parceria entre a Embrapa Amazônia Oriental (PA) e a Universidade de Makelle, da Etiópia, a tecnologia foi estudada e posteriormente implantada na região norte da Etiópia, sendo incorporada como política pública para agricultura familiar daquele país. No Brasil, o projeto foi batizado de IrrigaPote com pesquisas conduzidas em várias regiões do Estado do Pará e já apresenta resultados positivos em fruticultura e cultivo de hortaliças.
A tecnologia permite uma interação solo-planta-atmosfera de forma a garantir a oferta de água no solo em períodos de estiagem prolongada, tendo como foco a agricultura familiar, conforme esclarece a pesquisadora da Embrapa Lucieta Guerreiro Martorano, responsável pelo projeto no Brasil. Ela explica que, no processo, a água da chuva é captada por meio de calhas distribuídas ao longo dos telhados e depois armazenadas em reservatórios para então serem distribuídas para os potes de barro enterrados junto às culturas alimentares escolhidas pelos agricultores. “Uma tecnologia simples, de fácil implantação, que aproveita a água da chuva e garante as colheitas às famílias, gerando renda e segurança alimentar”, defende a cientista.
De acordo com a pesquisadora, a Embrapa foi convidada pela universidade africana para aderir ao desafio de encontrar soluções de irrigação de baixo custo e fácil adoção pelos agricultores, o que gerou mais um projeto da parceria Brasil/África integrante à iniciativa internacional Agricultural Innovation MarketPlace. A plataforma Marketplace agrega diversos especialistas e instituições brasileiras, africanas, latino-americanas e caribenhas para desenvolver, de madeira conjunta, projetos de pesquisa e inovação para a agricultura, por compreender o papel fundamental para o crescimento dos países e superação das desigualdades.
O projeto foi iniciado em 2014 envolvendo pesquisadores dos dois países, inicialmente, a fim de encontrar a tecnologia mais adequada para enfrentar o desafio da agricultura familiar no norte da Etiópia, com vistas a garantir a segurança alimentar em períodos de baixa oferta pluvial. De acordo com dados do projeto, naquela região, mais de 50% da água disponível para a agricultura é perdida por questões como evaporação direta, escoamento superficial e drenagem profunda.
Desafio da pesquisa para mudar realidades
Lançado o desafio, a cientista conta que a hipótese da pesquisa era comprovar a viabilidade do uso de tecnologias de baixo custo e soluções inteligentes para identificar estratégias de reposição hídrica e armazenamento de água em recipientes, considerando, além do preço, a facilidade de acesso aos materiais utilizados na implantação e a fácil adoção pelo público. Os vasos de cerâmica ou potes de argila foram a solução encontrada, mas, para implementá-la, era necessário descobrir que tipo ou formato de pote seria o mais adequado a cada cultura e medir, em campo, sua eficiência.
Para tanto, foram utilizados os princípios da agrometeorologia, campo de estudo de Lucieta, que utiliza a aplicação da meteorologia nas atividades agrícolas. “Estudar o desempenho de qualquer sistema de irrigação requer medir as taxas evapotranspiratórias (ET), monitorar as fases fenológicas e contabilizar crescimento e rendimento de culturas”, exemplificou. Isso foi feito para padronizar e testar as tecnologias e avaliar sua viabilidade técnica e econômica em condições de campo. “O estudo busca subsidiar estratégias de enfrentamento à seca em condições atuais e em cenários de mudanças climáticas, garantindo segurança alimentar, geração de renda e desenvolvimento local”, complementa a pesquisadora.
A pesquisa comparou ainda a utilização dos potes em detrimento a outras formas de irrigação de baixo custo, a exemplo do gotejamento, mas o resultado demonstrou, entre outros aspectos, maior eficiência dos potes por evitar a evaporação e preservar água, além de apresentar menor custo. Como resultado da etapa africana da pesquisa, concluiu-se que a panela ou pote de argila em forma de jarro não perfurado era a mais apropriada para o cultivo das culturas analisadas, como as hortaliças.
A aplicação em campo incluiu a preparação de manuais de treinamento traduzidos para o idioma local, tigrigna, que foram distribuídos para mais de 60 agricultores e 12 agentes de desenvolvimento agrícola, além de especialistas em extensão do distrito. O processo tecnológico foi estruturado e listado como política pública para o norte da Etiópia.
De acordo com a pesquisadora, a tecnologia é relativamente simples e há séculos vem sendo utilizada em diversos países sem, no entanto, o estabelecimento de protocolos, testes e pesquisas de eficiência necessárias para uma validação.
Para a instalação do equipamento de irrigação, são necessários potes de barro (argila), além de tubos, flutuadores, conectores, higrômetros, calhas e tanques de água. Na África, a água da chuva era coletada pelas calhas, mas os agricultores tinham de levar o líquido até as áreas de cultivo e abastecer os potes que são enterrados juntos às plantas, aumentando o trabalho e desgaste físico no campo.
Mesmo sendo eficiente para oferta de água, a observação desse trabalho extenuante incomodava a pesquisadora e ela partiu para um novo experimento, o de automatizar todo processo, mas com equipamentos simples, que continuassem a garantir à viabilidade econômica do sistema. “No Brasil, a tecnologia foi testada já com o processo todo automatizado e deve ser patenteado ao longo de 2017, ano em que se encerra o projeto”, adianta Lucieta.
Os potes são enterrados em covas junto às plantas a serem irrigadas e recebem, por meio de tubos, a água captada da chuva. A cientista conta que a diferença entre modelo africano e o brasileiro é que aqui a água segue automaticamente do reservatório para os potes, por meio do sistema de boias, semelhantes ao utilizado nas descargas dos banheiros ou caixas d’água.
A partir daí a natureza assume, e a planta vai prolongar suas raízes, que envolvem os potes, sugando a água necessária somente no período de estiagem. “Quando há oferta hídrica, com as chuvas, por exemplo, a água do pote permanece intacta”, garante a pesquisadora.
Ela explica que isso ocorre porque quando o solo seca, a força gravitacional faz com que a água condense na superfície do pote, que é feito de barro − uma substância porosa − e, por isso, a planta emite a raiz até o pote e vem captar a água que está condensada na superfície.
Embora a Amazônia seja reconhecida por seus rios de água doce e grandes períodos de chuvas, a estiagem é uma realidade durante vários meses, algo que vem se agravando nos últimos anos. “Temos alta oferta pluvial, mas, nos meses de agosto a outubro, apenas 4% da Amazônia não está em deficiência hídrica. Por isso, os produtores em mais de 90% da região não conseguem cultivar nesse período, acarretando perda de fonte de renda da família e risco à segurança alimentar”, analisa Lucieta.
Após testar o sistema de irrigação em áreas de pesquisa da Embrapa em diversos municípios paraenses, a cientista levou os experimentos para a comunidade de Lavras, zona rural de Santarém, município do oeste paraense. Com apoio da Emater do Pará, a pesquisadora instalou o projeto IrrigaPote na propriedade de dona Maria Cinira e João da Rocha. O sítio do casal está em processo de transição agroecológica e comercializa frutas e hortaliças em uma feira semanal de produção orgânica em Santarém. Dona Cinira contou que trabalha como agricultora há mais de 30 anos e que nos últimos anos vinha perdendo dinheiro e produção com a seca. “Não temos poço na comunidade e sofremos com a falta de água”, comentou a agricultora.
A situação vem mudando desde a instalação do IrrigaPote, como festejou a agricultora. “Para nós está sendo uma experiência muito boa. Minhas plantas estavam morrendo e eu não tinha solução. Os pés de acerola, que estavam morrendo, retornaram e já deram uma boa produção este ano. As outras plantas também estão renovadas e tenho certeza que só vão melhorar”, conta.
Satisfeita com os resultados, dona Cinira sonha agora com tempos melhores e acredita poder manter a família com qualidade de vida no campo. “Quero meus filhos trabalhando aqui com a família, mas sem a garantia da produção e da renda, não seria possível. Agora temos mais esperança na produção e nossos filhos ficam mais seguros em continuar com a agricultura e não precisam ir morar na cidade”, comenta.
Além de uma tecnologia social de baixo custo e fácil adoção pelos agricultores familiares, o projeto IrrigaPote possui diversos componentes de sustentabilidade ambiental e social. A pesquisadora lembra que a agricultura é responsável por até 70% do consumo da água potável mundial e que esse recurso é limitado, até mesmo em uma região como a amazônica. “O IrrigaPote aproveita a água da chuva e seu sistema não utiliza energia elétrica, resultando em economia para o agricultor que não precisa arcar com a despesa extra da conta de luz. Também ganha o meio ambiente no uso eficiente do recurso hídrico e no serviço ambiental como provisão de água”, defende a pesquisadora.
Lucieta diz também que outra vantagem para o agricultor e o meio ambiente é que no sistema de irrigação com potes de argila, como as plantas emitem as raízes até o pote, a própria planta suga a quantidade de água necessária a seu pleno desenvolvimento, não correndo o risco de os demais sistemas encharcarem a terra com excesso de líquido ou ofertar menos água que o necessário e, com isso, comprometer o desenvolvimento e a produtividade. “Ganha o produtor em tempo de trabalho ou adequação ao sistema que é autorregulável e inteligente, a planta, que tem água na medida certa, e o meio ambiente, com a ausência de desperdício de água”,
A satisfação com os resultados trouxe novas perspectivas ao projeto que, em 2017, deve ganhar outras formas para aumentar a diversidade na produção, renda e mais oferta de alimento aos agricultores. Lucieta adiantou que vai iniciar a análise do plantio de hortaliças em sistema de mandalas, dispostas ao redor dos potes utilizados inicialmente, somente para a irrigação de árvores frutíferas. Ela acredita que essa tecnologia poderá gerar renda extra às famílias o ano inteiro, pois haverá colheitas regulares preenchendo os períodos entre as safras das frutas ou mesmo durante o crescimento da árvore até ficar adulta e produzir frutos.
Fonte: Só Notícias/Agronotícias