Dói o coração e revolta qualquer cidadão acompanhar pela mídia o abandono a que foi relegado nosso povo pelos atuais governantes e gestores da saúde pública em Mato Grosso e em alguns municípios, como Cuiabá e Várzea Grande. O descalabro a que foram submetidos os estabelecimentos públicos de saúde só é menor que a irresponsabilidade dos responsáveis. O desamparo e o desespero das pessoas em busca de socorro parecem não comover nossas autoridades que agem como se não tivessem nada a ver com o problema e procuram responsabilizar os trabalhadores de saúde pela situação. Ainda outro dia, o ex-governador Blairo Maggi declarou à imprensa que a saúde pública estava inchada. Ora, a Saúde não é sapo, que incha sozinho! Se a Saúde está inchada, alguém a inchou. E como perguntar não ofende, quem teve poder de contratar, gerenciar e distratar servidores públicos nos últimos anos? Como se justifica o inchaço, se não houve incremento do número de hospitais, ambulatórios, nem serviços de promoção e prevenção da saúde no mesmo período?
O abandono do usuário do SUS à própria sorte só encontra paralelo no desrespeito ao trabalhador e ao profissional da saúde pública no estado. O argumento atual, que parece ter saído de livro de autoajuda, é que o servidor público da saúde precisa "sair da zona de conforto". Vá lá saber o que é isso! Pelo sentido dado pelos discursos de alguns gestores, supõe-se que seja uma expressão substituta daquele antigo refrão, carregado de preconceito, "funcionário público não trabalha". A situação é inversa, o servidor precisa é "entrar na zona de conforto" e trabalhar em condições adequadas, em ambiente saudável e confortável, onde não faltem insumos e equipamentos, com salários dignos e políticas de valorização da carreira, como programas de educação permanente, por exemplo, que motivem e estimulem o servidor público a ampliar seus conhecimentos e melhorar seu desempenho. Creio que nossas autoridades estão confundindo a "zona de conforto" de seus gabinetes refrigerados e de suas próprias remunerações com as condições de trabalho nas unidades públicas de saúde e os salários dos servidores públicos, ambos deploráveis.
Ao contrário do que afirmam, o trabalho dos profissionais e trabalhadores de saúde na rede pública, sobretudo daqueles em contato direto com a população, é heróico. A população só não está totalmente abandonada graças à iniciativa de inúmeros servidores públicos que, generosa e criativamente, acolhem, atendem e resolvem os problemas das pessoas. Mantém o espírito público, apesar dos baixos salários e das precárias condições de trabalho. Os que pensam que o trabalho na saúde resume-se a operar manuais e rotinas preestabelecidas, seguindo ordens programadas, estão muito enganados. Os profissionais e organizações de saúde precisam de autonomia, que é característica fundamental deste tipo de organização. Em outras palavras, não será o secretário de Saúde, nem o prefeito, nem o governador quem dirão para uma equipe cirúrgica qual o melhor procedimento para operar um paciente.
Ou para uma equipe de saúde da família como estabelecer vínculos afetivos com um paciente com pressão alta para convencê-lo seguir um longo e difícil tratamento. Querer transformar o profissional de saúde em robô, que não pensa, mas apenas executa ordens sem questioná-las, mesmo que contrariem seus interesses e os dos usuários, é tarefa contraproducente, além de inútil, por impossível. Neste sentido, é deplorável o ponto a que chegou a gestão da saúde pública em Mato Grosso. O memorando circular nº 11, de 01/06/2011, assinado pelo secretário de Saúde, dirigido a todos os diretores e gerentes do órgão reza: "Informamos a Vossa Senhoria que a partir desta data ficam suspensas temporariamente toda e qualquer participação de servidores desta secretaria em eventos como cursos, palestras, seminários, simpósios e/ou outros que impliquem ou não em despesas, sem a prévia autorização deste subscritor, até segunda deliberação."
Está proibido dar uma palestra na escola do bairro, assistir a um evento de atualização científica ou participar da conferência de saúde do seu município. Será que estão pensando que são proprietários dos servidores públicos? Tancredo Neves dizia que a base da autoridade era dar ordens que pudessem ser cumpridas. Bons tempos aqueles em que não eram raros os políticos com bom senso e defensores dos interesses públicos.
Júlio S. Müller Neto é médico-sanitarista e professor do Instituto de Saúde Coletiva/UFMT
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