Primeiro lavar bem o ferimento com água e sabão de soda, despejar álcool sem piedade e depois mercúrio cromo ou mertiolato. Receita infalível. Nos furúnculos, complexa de alho, ou fumo macerado, untado em azeite de mamona que nunca faltava naquelas miseráveis residências que os tinha para alumiar a casa e curar umbigo dos rebentos.
Com exceção ao álcool, adquirido no armazém de secos e molhados, mercúrio e mertiolato eram os únicos curativos de farmácia. O resto era tudo medicina caseira. As ataduras eram feitas com retalhos das fazendas guardados para babados de saias das moças e remendos de calças e camisas dos homens da casa. Santo Deus nos acuda! Como eram pobres os pobres daqueles pobres dias. Minha mãe olhava para os espinhaços dos filhos e rogava a Deus que não lhes abatessem uma espinhela caída ou um mal de simioto nos menores, amamentados ao leite das velhas e magras cabras.
E enquanto, sob os rogos a Deus, minha mãe labutava com os cortes nas pernas e estrepadas nos pés dos filhos peraltas, íamos nós, os próprios, nos nutrindo da rebeldia imposta à anorexia de nossos corpos. Por isso, que não faltasse, a todo e a qualquer custo, o azeite de mamona, o álcool (ou cachaça em falta dele), sabão de soda (adquirido a partir de uma mistura homogênea com soda e sebo derretido), alho, fumo, mercúrio e mertiolato, sem contar as ramadas de um tudo, produzido na horta, para os chás, para os curativos e para as rezas (matéria prima para as benzedeiras, curandeiros e para o charlatanismo de todas as épocas).
Dia chegou que terreiro da casa era uma ingratidão da vida para a família que tinha nas galinhas (cerca de dúzia e meia) das raças rhode (que a gente chamava de ródia), garnisé (galinzé para o povo da roça), d"angola e pescoço pelado, e em seus ovos, a mistura quase que diária, e um cozido das mais velhas e não mais poedeiras em situações especiais de aniversário, Natal do Menino Deus e visita acidental de um parente rico – porque por mais pobre que seja, toda pessoa sempre tem um parente rico para aporrinhá-la ou desdenhá-la, quando não os dois.
Mas, como eu dizia da ingratidão da vida, com o perdão dos céus pela ofensa, terreiro da casa amanheceu com o galináceo estendido.
Minha mãe, sempre a primeira a levantar, por sorte e para adiar um pouco mais seu desespero, naquele dia levantou cedo, fez o café, mas não saiu na soleira da porta pra não tomar friagem devido à dor nas cadeiras por conta de que dia anterior ficara de cócoras no torrador de café – daí que receber a brisa da manhã não era mesmo nem de pensar -, então foi acordar os meninos pra pegarem espigas de milho na tulha, debulhar e jogar pras galinhas que, descidas do poleiro, já deviam estar ciscando e cacarejando, chamando os pintos.
E nós, meninos e meninas, acordamos. Acordamos para a alegria da vida e para os arranhões de todos os dias. Acordamos para o encontro com a devasta. O que era aquilo? As d"angola inertes e sem forças nem para cacarejarem o "to fraco, to fraco", as de pescoço pelado tinham a pele flácida do pescoço dilacerada, e as outras, vertidas em sangue, foram mortificadas sem piedade.
Papai passou em passos largos, atravessando rapidamente aos nossos olhos e nem se deu conta do acontecido. Preocupado com o pequeno roçado de milho não tinha olhos para outra coisa. Mal nos deu a benção e desapareceu no trilho. O que fazer? Por onde começar? Entreolhamos-nos. Água e sabão nem pensar: tratamento para machucados de seres humanos e animais de maior porte. Água em galinha seria forçar o pigarro e antecipar a morte! Helena agiu heroicamente: – Aqui está o mercúrio e aqui está o mertiolato, por onde começamos? – Pelas de pescoço pelado, respondi.
Carlos Alberto de Lima é jornalista em Alta Floresta
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