A Constituição Federal (art. 199, § 1º) e a Lei nº 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde – (art. 24) estabelecem que a participação da iniciativa privada no SUS está inteiramente adstrita à verificação da insuficiência da disponibilidade dos serviços prestados pela rede pública de saúde para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área. A participação do setor privado foi concebida como um recurso do qual o gestor público pode se valer para complementar os serviços realizados pela rede pública. Trata-se, nitidamente, de expediente extraordinário, autorizado pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional, e essa excepcionalidade justifica-se não somente em razão de a suficiência da rede pública ser um alvo a ser alcançado, mas também em virtude das alterações circunstanciais decorrentes das mudanças tecnológicas e epidemiológicas.
Buscar formas de execução indireta de serviços públicos de saúde, quando – e sempre que – manifestada a indisponibilidade da rede pública é, por conseguinte, um meio legitimamente posto à disposição do Poder Público para responder às demandas e necessidades da sociedade. Cabe ao Estado – esta é a diretriz basilar do SUS – perseguir o objetivo de alcançar a plena capacidade de prestar diretamente, com qualidade e resolutividade, as ações e serviços públicos de saúde, de acordo com a realidade de cada região e microrregião, ampliando a garantia do direito à saúde. Nesse sentido, recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada, ou seja, à capacidade instalada dos entes privados – quando verificada a insuficiência da rede pública em determinado setor – é, mais que uma faculdade ao Poder Público, uma obrigação, pois a ele cabe o dever indeclinável de prestar os serviços de saúde no âmbito do SUS e de realizá-los da melhor maneira possível.
Todavia, esse apelo à iniciativa privada deve ser eventual, pois esta é a sua característica principal. Se não assim, a participação do setor privado no SUS perde o seu caráter subsidiário, distanciando da finalidade expressa na norma jurídica que assegurou tal participação. Inobservado esse marco, o processo de transferência de serviços de saúde a cargo do Estado para a iniciativa privada conduzirá, inexoravelmente, à diminuição, paulatina e crescente, da capacidade da rede pública. Comprovadamente, a suficiência da rede pública tende a diminuir na mesma proporção em que se amplia a participação do setor privado no SUS. Cada vez mais o aumenta a dependência do Estado em relação a rede privada, caracterizando ofensa ao princípio da complementaridade previsto no art. 199, § 1º, da Constituição Federal. Desde a época da Constituinte, todavia, já se sabia que de “complementar” a participação da iniciativa privada nada teria, sobretudo em áreas como a hospitalar, campo onde a iniciativa privada sempre foi preponderante, com destaque para o setor das entidades privadas sem fins lucrativos. Ainda hoje, mais de duas décadas já passadas desde a criação do SUS, é do conhecimento de todos que o número de hospitais privados vinculados ao SUS continua sendo maior que o número de hospitais públicos. O número de serviços privados de saúde no Brasil, cadastrados no Ministério da Saúde, comprova a superioridade da capacidade instalada do setor privado em relação ao setor público.
Outro importante aspecto a enfatizar é quanto a impossibilidade de o setor privado assumir a gestão de serviços públicos de saúde. Isto porque, a complementaridade da participação implica que o setor privado, “em suas próprias instalações e com seus próprios recursos humanos e materiais, vai complementar as ações e serviços de saúde, mediante contrato ou convênio”. Essa é a idéia que explica a complementaridade dos serviços públicos pela iniciativa privada e que “afasta a possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado serviço”. Como afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o Poder Público não pode, por exemplo, transferir a uma instituição privada toda a administração e execução das atividades de saúde prestada por um hospital público ou por um centro de saúde. O que ele pode fazer é contratar instituições privadas para prestar atividades-meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, pois estará transferindo apenas a execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde, mas não sua gestão operacional.
Ademais, tratando-se de “participação complementar” das entidades privadas, como determina a legislação, obviamente referida participação somente poderia ser “complementar” à atividade-fim, que configura o serviço público. Se não assim, não teria sentido o texto constitucional tratar de participação “adicional”, isto é, que irá somar aos serviços diretamente prestados pela rede pública de saúde, de modo a suprir lacunas com o objetivo de conferir ao Estado condições de cumprir integralmente sua obrigação. É sempre relevante lembrar que o sistema público de saúde adotado pelo Brasil tem natureza singular, pois concebido como modelo de sistema integrado, no qual o financiamento é público e a atividade prestacional é incumbência dos órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, que constituem o SUS, como dispõe o art. 4º da Lei nº 8.080/90. E essa rede pública de saúde, como estabelece a ordem jurídica vigente, deve ser suficiente para atender, com eficiência, toda a população.
Há, portanto, uma meta a ser continuamente alcançada: a suficiência da rede pública. E é ela que justifica e fundamenta o caráter complementar da participação da iniciativa privada no SUS. Conforme se vê, existe um impedimento constitucional na assunção por particulares da tarefa do Estado de realizar diretamente os serviços públicos de saúde. Tal conclusão é incontestável pela sua obviedade. Se a legislação ordena, expressamente, que iniciativa privada somente pode fazer parte do SUS de forma complementar, é evidente que as ações e serviços do SUS somente podem ser prestados diretamente pelo aparato do Estado. Assim, comprovada a real necessidade de prover a rede pública de saúde de determinado serviço que esta não logrou dispor, pode-se – e deve-se – recorrer aos serviços de assistência à saúde ofertados pela iniciativa privada para complementar a rede pública. Essa necessidade, contudo, deve advir do contínuo aumento da demanda e, consequentemente, da obrigação de o Estado ampliar os cuidados de saúde a toda a população, fruto da dinamicidade da vida. Nunca pela ausência de planejamento do gestor público ou pela desobediência aos ditames constitucionais.
O Brasil tem hoje um dos mais avançados sistemas de saúde pública e o que se espera do Poder Público, desde a sua concepção, não é a criação de engenhosas alternativas (OS, OSCIP, fundações estatais, fundações de apoio etc.) para a operacionalização do SUS. Esse caminho já foi traçado pela Constituição e pelas normas infraconstitucionais. É suficiente cumprir o que determina a ordem jurídica vigente.
Esse intolerável descompasso, ainda hoje existente, entre a realidade fática e a realidade normativa do SUS precisa ser veementemente combatido pela sociedade e pelos órgãos e entidades de controle da atividade estatal. Descompasso expresso de várias formas, dentre elas a “utilização” incorreta, por muitos entes da federação, da participação complementar da iniciativa privada no SUS, transformando o extraordinário em ordinário, mascarando a falta de planejamento e o desrespeito do Poder Público pela Constituição e pelo SUS.
Beatrice Maria Pedroso da Silva – professora de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFMT