Aos oitenta e seis anos, viúvo havia quatro, meu bisavô, que sempre viveu e só deixou o estado de Minas Gerais, levado pelos filhos que se aventuraram, nos anos quarenta, ao estado do Paraná, atraídos pelos cafezais, vivia delirando “Eu tenho uma filha no Pará e um filho no estado de Pernambuco”, ele dizia. Nós – bisnetos –, crianças, ríamos. Meu pai, minha mãe, ambos de trinta e poucos anos, e meus avós, beirando os sessenta, também riam daquela ideia que todos consideravam absurda.
“O nono está caducando”, dizia meu pai. “Ele gosta de brincar”, completava meu avó. “Vovô Altino é um poeta, isso sim”, observava, com sabedoria, tio Alfredo. Tio Alfredo era político e, como todo político gosta de ter o seu nome citado em qualquer coisa que se escreva, eu citei o seu nome aqui. Meus avós e meus pais, sempre foram modestos. Meu avô, o pai de minha mãe, era muito estudado, mas também sempre foi modesto.
E o tio Alfredo estava certo. Meu bisa era um poeta. Foi ele que, por extensão, me levou ao mundo dos versos. Extensão porque meu avô também era poeta e meu pai o maior de todos. Todos analfabetos (exceto meu avô muito estudado) e todos poetas. Uns repentistas, outros criadores e cantadores de cantigas nas folclóricas festas de Minas. “Corina cheira meu cu, mas não conta pra ninguém, não quero que os outros saibam, o cheiro que meu cu têm”. Não sei quem foi Corina, mas essa quadrinha tem endereço, foi escrita pelo meu avô. “Quando eu vim de minha terra, uma moça me chamou, vem tomar do meu café, que ainda há pouco coou, se eu fosse solteiro eu ia, eu sou casado não vou”, encantava-nos, meu pai, ao som de um cavaquinho, em noites enluaradas, à beira do terreirão sobre o qual deitavam-se os grãos do café londrinense.
Veio geada brava que matou cafezal, canteiros e canteiros de outras culturas e também meu velho Bisa que amanheceu mas não anoiteceu. Morreu de hipotermia (doença que mata crianças desnutridas e velhos desagasalhados). Antes, em seu leito de morte, confessou aos filhos, genros, noras, netos e bisnetos. “A Maria Altina e o João Alberto, nasceram de mim com a Durvalina do velho Aniceto” que morava do outro lado do rio e que nunca soube quem era o pai dos netos porque dizia que se soubesse matava o “filho duma égua” que era casado, isso ele sabia. E antes que a Lina parisse mais um, porque fogosa e parideira, de mão cheia, era ela, seu Aniceto, morto de vergonha, porque tinha vergonha na cara e, para não morrer, verdadeiramente, de desgosto, vendeu a propriedade, catou as traias e a família e se enveredou por lugar desconhecido.
Última notícia trazida por um portador, a mando de Durvalina, falava dos filhos, agora já avós, que moravam, respectivamente, nos estados do Pará e Pernambuco. Bisa Altinho fechou os olhos e nós, os bisnetos, crianças, choramos. Meu pai, minha mãe, ambos de trinta e poucos anos, e meus avós, beirando os sessenta, também choraram. Choraram e muito. Pai, avô e bisavô, Altino de Almeida e Silva foi um verdadeiro poeta e, sobretudo, um grande homem.
Carlos Alberto de Lima é jornalista em Alta Floresta
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