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Senhor das Águas

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Entre 2006 e 2007, estava sob investigação em Cuiabá  a questão das dragas no Rio Cuiabá. Havia  várias denuncias sobre a atividade. Umas mais, outras menos. Com todo o gás e no clamor da luta ambiental, as secretarias de Meio Ambiente de município e também do Estado foram acionadas. O  Ministério Público Estadual também. O Ministério Público Federal também foi informado. Em mãos, a possibilidade de fazer um trabalho de grande repercussão visando salvar o rio Cuiabá da malversação de suas potencialidades e, claro, das oportunidades que oferece ao cidadão.

Mas precisava de mais. Especialmente conhecer mais a fundo para evitar que a espada da injustiça pudesse decepar situações que mais tarde seria de difícil reparação.  E eis que todas as pesquisas mais aprofundadas sobre o tema só chegava a uma pessoa, a um senhor de estilo medieval, calado, voz calma, passos lentos: doutor Domingos Iglesias Valério. Me pus a consumir cada detalhe, cada informação disponibilizada por ele sobre a questão. Era de quem eu precisava.

Fui procurá-lo. Não tinha endereço. A Defesa Civil do Estado, a qual ele serviu com tanto zelo por quatro décadas, me informara que ele estava aposentado e que não sabiam seu telefone. Cheguei a pensar que seria mais fácil conversar com Lula no Planalto por telefone que falar com esse senhor. Mas há coisas que pertencem a coisas que não são deste mundo.

Fui à missa na Igreja Mãe dos Homens e lá, por pura obra de Deus, ouço alguém pronunciar o nome Domingos Iglesias. Bingo!! Achei quem procurava. Homem de cabelos judiados pelo tempo, óculos grandes, de blazer branco usados pelos ministros da igreja.

Me apresentei e disse que precisava de umas explicações sobre o Rio Cuiabá para tratar a questões das dragas. Toquei em algo tão sagrado a ele quando a devoção às coisas de Deus. Recebi de Domingos Iglesias Valério, de pronto, ali mesmo, a frente do santuário, as explicações. Empolgado, alegre, ia colocando informações preciosas. Tive que interrompê-lo para dizer que a missa iria começar.

Ao final da missa convidei-o a ir em uma de nossas reuniões da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil para dar essas explicações a todos os membros. Convite aceito de pronto.

A sumidade não era uma estrela. Chegou o dia e lá estava o doutor Iglesias como era chamado por todos. Falou por quase duas horas e meia. Mostrou alguns gráficos e traçou algumas curvas que ele chamava de rio Cuiabá. Fez evolução do ciclo do rio por mais de cinco décadas. Notei que aquele senhor era sim uma jóia rara. Suas observações eram profundas e as explicações  tão simples que me fez por alguns minutos pensar que iríamos resolver a questão de forma muito fácil.

Ledo engano. Como disse um discípulo do doutor Iglesias no seu velório,  domingo, “as coisas fáceis ele explicava e as difíceis ele guardava para si e só explicava após resolvidas, mas explicava que a mesma parecia muito fácil”.

Foi uma manhã que eu jamais vou esquecer. Vi o brilho nos olhos do doutor Iglesias ao falar sobre o Rio Cuiabá, ao qual se referia como se fosse um filho. Vi a satisfação daquele homem ao estar ali na OAB podendo ser útil numa fase de sua vida em que já estava aposentado, porém com muita experiência para compartilhar e já não era mais ouvido.

A partir das orientações do doutor Iglesias conseguimos dar um novo rumo na atividade das dragas no município de Cuiabá. Como dito, denúncias foram feitas, licenças de operação foram cassadas, dragas se regularizaram. Sei que ainda falta muito, porém o começo foi a partir daquele encontro no lugar que ele mais gostava de freqüentar, a missa.

Me tornei um dos seguidores do doutor Iglesias. Sinto um vazio com a sua morte. Mato Grosso perdeu um grande homem, um cidadão honrado, digno, exemplo de homem público e voltado às causas humanas. De uma forma transcendental, no entanto, acho que não há um ente mais dolorido neste momento que aquele que foi o seu maior amigo: o Rio Cuiabá.

Descanse em paz mestre. Aqui continuaremos lutando para cuidar desse filho que é fonte de vida.

Leonardo Pio da Silva Campos é advogado, ex-presidente da Comissão de Meio Ambiente e atual presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de Mato Grosso.

 

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