Você certamente já ouviu falar em tomografia computadorizada. É um exame feito por um equipamento de última geração, capaz de reproduzir em três dimensões os desvãos mais íntimos do corpo humano. É uma conquista tecnológica impressionante, sobretudo quando comparada com os velhos exames de raio X, onde o resultado eram borrões preto e branco, muito diferentes dos detalhes microscópicos revelados pela tecnologia atual.
Pode parecer um tanto estranho iniciar um artigo sobre reputação e imagem, lançando mão de uma aparelhagem medicinal. Mas é justamente esse o ponto central de qualquer análise sobre imagem pública nos dias de hoje: a transparência não é um discurso politicamente correto, não é sequer uma concessão necessária nesses novos tempos. É apenas e tão-somente um dado da realidade. Não são só os homens públicos que estão mais expostos, nem só as instituições: até nossas entranhas estão mais expostas do que no passado. Tudo por causa do ambiente de tecnologia à nossa volta.
A história ensina que toda vez que ocorreu uma revolução tecnológica, como contrapartida houve uma profunda transformação na ética. Quando o ser humano criou a agricultura, a conseqüência foi o fim do canibalismo. Havia então excedentes e não era mais preciso devorar os adversários. Ou seja, um salto tecnológico provocou um progresso moral, onde o valor ético da vida passou a ser mais respeitado.
Séculos depois, com a invenção da máquina a vapor por James Watt, a conseqüência foi o fim da escravidão. Eram necessários homens livres para consumir os produtos que jorravam das linhas de produção. Uma nova revolução tecnológica, um novo salto ético, desta vez dando mais importância ao valor ético da liberdade.
Faz apenas uma década que passamos a viver num novo mundo. Devido à revolução tecnológica. Se as revoluções tecnológicas do passado provocaram grandes transformações no comportamento e na ética, o que dizer da atual que tem na tecnologia a sua própria razão de existir? A grande realidade é que somos a primeira geração a enfrentar este novo mundo. Não temos uma herança de nossos antepassados, mas deixaremos – com nossos erros e nossos acertos – um legado para aqueles que vierem depois de nós.
Fala-se muito em convergência. Mas nos esquecemos quase sempre que a convergência não é em mão única: é em mão dupla. Eu vejo o mundo: isso é a convergência. Eu vejo o mundo através de uma tela de computador, de tevê ou de celular. Eu estou mais próximo do mundo: essa é a convergência. Mas a contramão da convergência também é válida: o mundo me vê, o mundo está mais próximo de nós. Está mais próximo sobretudo dos nossos erros.
Porque tecnologia significa na prática ver a realidade em detalhes cada vez menores. Isso vale para a obstrução de nossas artérias, mas vale também para o comportamento de nossos governantes, as decisões administrativas daqueles que detêm o poder. Mais tecnologia significa que transgressões que antes podiam passar despercebidas hoje podem ser captadas e difundidas numa escala por vezes global.
A escala do erro mudou e mudou porque os outros estão mais próximos de nós. O pequeno erro de antes, agora, pode ser visto como uma grande contradição. Não podemos planejar nem nos comportar com o olhar do passado: temos de olhar para nossas atitudes com um olhar de prevenção igual ou superior ao do equipamento de tomografia, para continuar no exemplo.
A complexa rede de tecnologia a nosso redor atua como um grande aparato de vigilância: estamos sendo vigiados o tempo todo. A única resposta para isso é estabelecer uma “nanoética”, uma ética que esteja voltada para aquilo que, no passado, podíamos chamar de “detalhes”, mas hoje são fontes de enorme perturbação.
Por isso, é tão necessário uma mudança de mentalidade nos dias de hoje. Porque nascemos num mundo que não existe mais, aquele mundo do raio X, digamos assim. Mas estamos sendo vistos e expostos nesse novo mundo, o da tomografia computadorizada. Temos condicionamentos na questão da imagem que não são mais válidos, porque ultrapassados. Temos que incorporar novas atitudes. Tecnologia não é uma nova teoria: é uma nova prática. Não exige apenas uma nova de pensar: exige uma nova forma de agir.
Há mais de dois séculos, Montesquieu desenhou o espírito que deveria basear o equilíbrio entre os poderes. No mundo de hoje, no mundo do Google, para que os princípios de igualdade e equilíbrio entre os poderes continuem valendo serão necessários novos posicionamentos institucionais. No caso do Judiciário, imprensado por um Executivo com permanente presença no ambiente social, assim como o Legislativo, será preciso cada vez mais se abrir.
Até o Supremo Tribunal Federal, através da tevê Justiça, já marcou posição nesse território, para não perder o passo na coreografia destes novos tempos. Para que o Judiciário permaneça ocupando seu espaço insubstituível no equilíbrio entre os poderes, será preciso estar mais próximo das pessoas. Através de uma Justiça mais ágil, claro, mas também através de uma postura que entenda o novo mundo que está aí. A transparência é uma grande aliada para que as idéias de Montesquieu continuem valendo. O mundo do Google agradece.
Mário Rosa é consultor, autor de três livros sobre imagem e reputação e professor dos cursos de MBA da FIA, ligada à USP