“De onde você é mesmo, Thiago?”. “Sou do Mato Grosso”. “Hum, da capital?”. “Não. Sou do interior, de Alta Floresta”. “Ah tá, tenho uma tia que mora em Campo Grande”. “Legal. Mas eu não vim do Mato Grosso do Sul”. “Ah não?”. “Não. Vim do Mato Grosso. A capital é Cuiabá”. (Aqui ocorre uma hesitação, inerente a qualquer processo grande de aprendizagem). “Ah, do Mato Grosso… do Norte, como dizem”. “Quem ‘dizem’? É Mato Grosso o nome”. “Ah sim, onde tem aquele problema da soja, das fazendas enormes cheias de gado… ah, do desmatamento da Amazônia, né?”.
Todos os mato-grossenses enfrentamos situações análogas ao diálogo acima, que se repetem com notável freqüência, sobretudo ao viajarmos para fora de nosso estado, não é, leitor? Mas convenhamos: “Problema” da soja e da pecuária foi algo novo. Pitoresco, no mínimo. Já ouvi muitas idiotices relativas ao desconhecimento geográfico, ou referentes às nossas atividades econômicas, de muitos brasileiros por aí, mas essa conversa, que já se repetiu com outras pessoas, foi a gota d’água, ainda mais considerando que se deu no meio acadêmico. Aqui na universidade, entre os alunos, a crítica ao plantio da soja e à criação de gado se baseia naquela velha história contada pelo professor de geografia do cursinho: o avanço da fronteira agrícola no centro-oeste, que está tomando conta do cerrado e entrando na Amazônia.
Hoje em dia não ouço ninguém falar que as indústrias da região metropolitana de São Paulo, ou de Curitiba, invadiram área da mata atlântica (aliás, “mata atlântica”? Sim, aquela floresta tropical que acompanhava o litoral do Rio Grande do Norte ao do Rio Grande do Sul) e da floresta de araucárias, no segundo caso. Eles se lembram, por exemplo, de que o setor secundário paulista gera muita riqueza e milhões de empregos, mas se esquecem, se é que sabem, de que o dinheiro da soja e do gado também propicia desenvolvimento, construindo pontes e escolas, abrindo estradas, fomentando a geração de empregos, melhorando a qualidade de vida em inúmeros municípios e garantindo o superávit comercial brasileiro. São atividades econômicas como outras quaisquer, praticadas, diga-se de passagem, no país inteiro. Não consideram, ou se fazem de desentendidos, a importância de tais atividades, no tocante ao fornecimento de alimento, interna e externamente, em um mundo que passa fome e enfrenta uma gravíssima crise de abastecimento alimentício. Lembram-se, como todo bom morador do asfalto, de ir ao supermercado e comprar a carne fresquinha, e ai do estabelecimento que não a oferecer nesse estado. Ambos os setores, pecuária e agricultura, mato-grossenses estão antenadíssimos no que há de mais atual nas relações entre setor primário e meio ambiente, como demonstrou, dias atrás, o Enipec, Encontro Internacional dos Negócios da Pecuária, em Cuiabá. O sistema de integração lavoura-pecuária, objeto de estudo pela Embrapa, ganha nítida e indiscutível relevância no Brasil, onde o produtor animal e vegetal é verdadeiro herói frente aos subsídios agrícolas concedidos por outros países, além dos Estados que boicotam, constantemente, a exportação da nossa carne.
Não obstante isso, as críticas dos forasteiros, quais sejam, os que não moram ou nunca moraram no Mato Grosso, especialmente os do sudeste e do sul, no que concerne à soja e à pecuária, não me incomodam mais como antes. Afinal, é praticamente impossível discutir com quem acha que pra cima do Rio de Janeiro é tudo Bahia. O que me provoca mesmo é o que está por trás de toda essa discussão e, atualmente, um dos assuntos mais discutidos no Brasil e no mundo, na área ambiental: o desmatamento na Amazônia. Nesse ponto, sinto-me realmente desafiado, pois as críticas que tenho que rebater não vêm apenas de fora – com essas eu nem esquento tanto a cabeça, considerando ainda que a imprensa aqui de São Paulo noticiou à exaustão o início da Operação Arco de Fogo, mas agora está silente com o desenvolvimento dela.
O nosso maior desafio é interno. Sim, o maior obstáculo está dentro do nosso estado. Deixou-me aflito saber, por alguns artigos do jornalista Onofre Ribeiro, no RDMOnline salvo engano no começo do ano, que boa parte dos habitantes do sul do Mato Grosso (em Cuiabá, por exemplo) apóia incondicionalmente as ações da Polícia Federal e da Força Nacional de cerco aos madeireiros (e aos produtores rurais do Nortão e do Médio Norte mato-grossenses, de maneira geral, conseqüentemente). No artigo “Desocupar Mato Grosso?”, de 19 de Março, especificamente, Onofre narra que “O ambiente está tenso, ao ponto do presidente da Federação da Agricultura, Rui Prado, acreditar que se fizer um plebiscito em Cuiabá, perguntando à população da capital se ela prefere manter o Médio Norte e o Nortão produzindo, ou optar pela desocupação das regiões, muito provavelmente ela opte pela segunda hipótese”. Isso demonstra, como o próprio autor do artigo enfatiza, a desinformação e o desconhecimento inaceitáveis de grande parte da população do nosso próprio estado sobre o Nortão, especialmente. Da noite para o dia, após três ou quatro décadas de colonização, parece que todas as nossas atividades econômicas estão eivadas de ilegalidade, a ponto de sermos considerados, por nossos conterrâneos, os grandes vilões do Mato Grosso.
Se os forasteiros precisam estudar geografia, para saber ao menos que a nossa capital é Cuiabá, devem os mato-grossenses estudar a história do seu próprio estado (aliás, a disciplina “História do Mato Grosso” integra, obrigatoriamente, a grade curricular das escolas mato-grossenses? Se sim, esse ensino é monitorado?). Aquele lema “Integrar para não entregar”, lançado pela ditadura militar, há mais de três décadas, que todos estudamos no colégio, não é história para boi dormir não. Aconteceu. Nós, do Nortão, somos os filhos desse projeto, que na época se justificava na necessidade de se garantir o desenvolvimento da região e a soberania nacional contra a ocupação externa, a qual, neste exato momento, ocorre silenciosamente, conforme denunciou, em rede nacional, o Comandante do Exército na Amazônia, General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, por ocasião da deflagração do conflito na área denominada Raposa Serra do Sol, em Roraima. E não será uma Operação Arco de Fogo, respaldada por dados absolutamente equivocados do INPE, que tentará, à força, desrespeitando os filhos das nossas cidades e estrangulando a nossa economia, desmoralizar a nossa história e mostrar que fomos ludibriados pelo regime de exceção.
Não chegamos ao Mato Grosso de penetras. Nós fomos conclamados a migrar. Convidaram-nos para a festa e, agora, no momento de cortar o bolo, pretendem nos botar para fora (veja você: não estão nos convidando para sair não. É expulsão mesmo. Armada, covarde), parafraseando o desbravador do Nortão Willian C. Lima. No entanto, se, ainda assim, o atual governo federal, ou seja, o PT, que tanto entende de combate à ditadura, acha que os militares erraram ao promover a ocupação amazônica, que crie, então, mais uma bolsa pecuniária (a grande especialidade deles) para os que – como os exilados, presos políticos e torturados, que, além de receberem pensão vitalícia, conseguem polpudas indenizações – foram e estão sendo prejudicados por uma iniciativa de trinta, quarenta anos atrás. Tenho até uma sugestão: Bolsa-Amazônia! Também vitalícia, e sem excluir a possibilidade de indenização gorda, claro, com a finalidade de compensar as décadas de dedicação visada ao desenvolvimento e à garantia da soberania do país sobre essa região. O próprio ministro do meio ambiente, Carlos Minc (com esse sobrenome, poderia ser ministro da cultura, ainda mais com toda aquela performance midiática e panfletária), poderia nos ajudar nessa empreitada, uma vez que foi guerrilheiro atuante contra a ditadura militar.
Ministro, forasteiros e conterrâneos desinformados: não defendemos a ilegalidade e as irregularidades ambientais que possam ocorrer em nossa região. Ninguém sustenta que não deva existir fiscalização e punição, quando tais forem os casos. Mato Grosso tem compromisso com a legalidade e o meio ambiente, o que se corrobora pelos números divulgados recentemente pelo IMAZON (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), que apontam redução do desmatamento acumulado no estado, comparando-se o período de agosto de 2006/abril de 2007 ao de agosto de 2007/abril de 2008. O que combatemos é a desproporção repentina com que o governo federal nos ataca. Não é com operações pirotécnicas, arbitrárias e policialescas que se resolve a questão. Basta imaginar, a título de exemplo, o que ocorreria na economia desta metrópole de onde escrevo, se fosse decidido interditar, da noite para o dia, todas as indústrias que lançam dejetos no rio (?) Tietê.
Tem mais: Querer destruir a história de heroísmo e de coragem dos colonizadores e habitantes do Nortão é pretender acabar com a história das famílias que, com inúmeras incertezas, e com total incentivo do governo federal, dispuseram-se a enfrentar os empecilhos oferecidos por um lugar até então praticamente inóspito, onde tudo estava para ser feito. E, advirta-se, essas atitudes, baseadas em achismos, emitidos por quem comodamente vê tudo de longe, não passarão de mera pretensão.
Thiago Stuchi Reis de Oliveira, é alta-florestense e
estudante de Direito na Universidade de São Paulo (USP).
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