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Dois Carnavais

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Se a primeira impressão fosse a que, de fato, ficasse, eu teria pegado o primeiro avião de volta ao Brasil, logo que cheguei à Alemanha, em Düsseldorf, às margens do rio Reno. Era quase meia noite de domingo, o frio era cortante e não havia uma alma solidária que pudesse me ajudar a comprar a passagem de trem – as máquinas não estavam aceitando o cartão de crédito, sem que eu saiba até hoje por quê – até Bonn, cidade em que faria um curso de alemão, em janeiro. Na verdade, pedi ajuda para um alemão (o único!) que encontrei lá, mas ele respondeu que estava com pressa, pois seu trem partiria em poucos minutos. “Sheiße” (“Shit”, em inglês. Não arrisco a tradução para o português) foi a primeira palavra em alemão que proferi na Alemanha (os palavrões são ferramentas lingüísticas muito úteis na expressão dos sentimentos humanos). “Como esse povo é carrancudo, reservado!”, insistia em pensar. No entanto, para a minha felicidade e contrariando boa parte dos estereótipos que construímos dos alemães, essa foi apenas a primeira impressão que tive, a qual era, devo dizer, completamente equivocada.
O fato é que cheguei a Bonn, naquela mesma madrugada, sem que meu trem atrasasse sequer um minuto, o que, num primeiro momento, estranhei. Coisa de brasileiro, o leitor me entende. De imediato compreendi a pressa do nativo que encontrei em Düsseldorf. Em seguida, fui perguntar a uma senhora, dona de uma banca de jornal na própria estação, onde se localizava o Goethe Institut, escola onde estudei e para onde deveria me dirigir. Solícita, a mulher, além de me explicar como chegar ao local, acompanhou-me até a frente da estação para apontar a direção a ser tomada. Incontáveis foram as vezes em que recebi tratamento tão cortês, de modo que o clichê “Brasileiros compõem o povo mais acolhedor do mundo” sempre me planta uma dúvida na cabeça desde então.
Estar em um país onde as coisas realmente funcionam é outra história, e confesso que me acostumei rapidamente, sem maiores dificuldades, ao modo de vida daquela parte do velho mundo. A fim de ilustrar novamente, conto-lhes mais um caso que me aconteceu, juntamente com alguns colegas de curso: pegávamos um ônibus na “Cidade do Beethoven” (Bonn é a cidade onde o nobre compositor nasceu) e antiga capital da Alemanha Ocidental, quando, no momento de pagar pelo serviço prestado, qual foi a nossa surpresa ao escutarmos a recusa por parte do cobrador de receber o dinheiro. “Podem passar”, disse ele, naturalmente. “Mas por quê? Queremos pagar! Não compramos o ticket, nem temos nenhum tipo de passe!”, retorquimos, confusos. “Não precisam pagar. O ônibus atrasou mais que cinco minutos, então a passagem não é cobrada”. Se até meus colegas europeus – entre outros, italianos, espanhóis, franceses – e americanos ficaram impressionados, imagine eu, que moro em São Paulo. A lógica empregada pelo cobrador, nem um pouco lógica para nós naquele instante, seria mais ou menos esta, grosso modo: o cidadão paga impostos (a carga tributária alemã é altíssima!), e o governo tem que reverter esse dinheiro em serviços para a população. Portanto, se o Estado falha (o ônibus atrasou), o cidadão não pode ser ainda mais prejudicado, não pode pagar duas vezes.
A partir de experiências como essas, começa-se a entender um pouco melhor a maneira como os alemães agem. Um alemão dificilmente puxará conversa, ou, menos ainda, falará de sua vida pessoal a um interlocutor desconhecido, seja na fila do banco, na do supermercado, no elevador, ou em qualquer outra situação análoga, na qual, pelas circunstâncias, somos levados a ter contato um pouco maior com os outros – daí talvez os acharmos “reservados”. Não obstante isso, como anteriormente exemplificado, os alemães são educados e gentis com quem, demonstrando a mesma postura, dirigi-se a eles. De modo geral, tais são as características intrínsecas a eles nas relações privadas, e, até aí, nada de muito interessante, afinal, cada povo tem as suas manias.
No modo como o cidadão alemão se porta frente ao seu país é que transparece o que mais chama a atenção: há o respeito pelo que é público. As ruas e os parques são limpos, e não apenas por ação do governo local, mas assim são mantidos pelos próprios habitantes da cidade; o lixo, em todo lugar, é separado de acordo com o material de que é feito para ser reciclado, inclusive nas residências, com a finalidade de proteger e preservar o meio ambiente comum; quem vai ao supermercado leva a própria bolsa de tecido para colocar as compras. Sacolas de plástico? Terá que pagar por cada uma delas, ou levará tudo nas mãos. Sacolas de plásticos poluem a cidade, e levar dez delas para casa toda vez que for ao supermercado é puro desperdício de matéria-prima; apesar de não haver guichês de venda de bilhetes nem catracas nem fiscalização nos metrôs, os usuários sempre os compram nas máquinas eletrônicas.
Durante a viagem, isso me fez refletir muito. Como podem ter tamanha consciência cívica ao lidar com a coisa pública? Como conseguem ser tão perfeccionistas? Nasceram assim? Em meio a tantas dúvidas, ensaio uma resposta. Não, não foram dados à luz já prontos para a vida civilizada. A relação público-privada se desenvolve com sucesso porque um princípio básico de convivência é observado – respeitam o que é de todos porque são tratados com respeito por quem os representa, ou o nosso famoso ditado “Trate as pessoas como gostaria de ser tratado”. Há uma distribuição simples de tarefas: o cidadão faz a sua parte e o governo faz a dele, em uma relação mútua de respeito. O resultado, nítida e inexoravelmente, há de ser positivo. Some-se a isso o fato de as imprensas municipais e regionais serem extremamente fortes na Alemanha, o que possibilita um controle ainda maior do que ocorre na região em que se vive. Antes de se preocupar com o que a chanceler Angela Merkel anda fazendo, ocupa-se com o quintal de casa.
Fim de curso, quase fim de viagem, alguns dias ainda sobraram e passei o carnaval por lá. Comparando com o carnaval brasileiro, há algumas diferenças. Na verdade, na Alemanha a festa só ocorre em algumas regiões, como a do Vale do Reno, sobretudo em Colônia, perto de Bonn, e na Bavária, em Munique. As pessoas se fantasiam e vão para as ruas. De resto, o espírito carnavalesco é bem semelhante – bebe-se muito (ainda mais no país que produz a melhor cerveja do mundo) e os resultados são previsíveis: ébrio que é ébrio é igual no mundo todo. Cessado o carnaval, já na quarta-feira de cinzas tudo voltava ao normal. As ruas foram limpas e a euforia passou. Na sexta à noite, de volta ao Brasil, tudo também estava normal. Minha bagagem demorou uma hora para chegar, e o trânsito na Marginal Tietê ainda era caótico, às onze da noite, pois começava a festa da Vai-Vai, escola de samba vencedora do carnaval paulistano de 2008. Tão Brasil!

Thiago Stuchi Reis de Oliveira, 21, é alta-Florestense e estudante de Direito na Universidade de São Paulo (USP).
[email protected]

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