Pouco conhecido nos círculos universitários, porém saudado com reverência por intelectuais do estofo de um Miguel Reale e um Josué Montuello, em artigo polêmico, todavia condizente com a verdade dos fatos, o filosofo Olavo de Carvalho denunciou a forma sorrateira com que a ONU visa impor suas idéias claramente oriundas da Ilustração (corrente filosofia de onde emergiu a Revolução Francesa), aos países nominalmente soberanos.
Para melhor compreensão do tema exposto, imprescindível se torna nos remetermos ao pensamento (doutrina) erigido pelo jurista alemão Hans Kelsen, discípulo de seu conterrâneo, o filósofo Emmanuel Kant que, por sua vez, foi o grande responsável pelo chamado “giro copernicano” no campo do pensamento.
O moderno Estado de direito, tornou-se a grande aspiração daqueles que querem ver respeitados os direitos humanos, pois que, significa essencialmente a submissão do Estado à ordem jurídica, com a finalidade de preservar as liberdades em face as arbitrariedades do poder.
A ilusão da subordinação do Estado à ordem jurídica estava fadada ao fracasso, porquanto, alicerçado em um critério subjetivo de justiça, que é o traço característico da filosofia moderna (partindo sobretudo de Kant) que rechaçou a adequação do intelecto com a coisa, vale dizer, do ser que pensa com o objeto pensado (adaequatio rei et intellectus), reduzindo toda realidade ao pensamento.
Trata-se de uma inversão gnoseológica e metafísica, de modo que agora não se trata de conhecer a ordem do universo, interpretá-la, compreende-la. O que se pretende é, inversamente, impor a sociedade certas regras determinadas pela inteligência; compreender é, a partir deste momento dominar.
As conseqüências no campo do direito foram inevitáveis. O direito natural, compreendido em seu sentido lato, justifica o direito positivo perante a razão, é a força geradora do direito positivo.
Ocorre que este direito natural que é mais do que “um ponto de vista sobre a justiça”, foi relegado ao ostracismo pelas idéias demolidoras provindas desde a renascença até nossos dias. Logo, ausente o critério objetivo de justiça (objeto da ciência jurídica), a verdade, o lícito, o bem e o justo, passam a ser definidos ao talante do legislador, submetido à ideologia dominante ora no poder. “Mutantur non in melius, sed in aliud”; eles procuram não o que há de melhor, mas o que há de novo, dizia Sêneca.
Como a definiu Hans Kelsen, a lei é lei e esgota todo direito; o único direito existente, válido e completo é o direito positivo estabelecido pelos órgãos estatais. Esta ordem jurídica estatal é suprema, e compreende as restantes ordens como entidades parciais e delimita o perímetro de sua validez.
Nesse sentido, a justiça passa a ser criação da lei, obra exclusiva da mente dos legisladores; o justo é o legal à margem da licitude ou ilicitude moral. Assim, todo direito torna-se reduzido a um conjunto de normas positivas que emanam sempre de outra de nível superior e que culminam na Constituição onde se concretiza a Volonté Générale e as restantes normas não são senão o desenvolvimento dialético e progressivo dos conceitos gerais e abstratos contidos naquela. O esquema se completa, consoante a teoria pura do direito de Hans Kelsen, com a Norma Fundamental (Grundnorm) que gravita por cima de toda pirâmide jurídica.
Este conceito de perfis claramente hegelianos resta completado pelo formalismo positivista, já que as cadeias de validez que se estendem ao largo de todo ordenamento jurídico, se fundamentam na observância da hierarquia imposta pela norma fundamental.
O que interessa observar é que a própria Constituição se submete as cadeias de validez de Kelsen concretizada no Direito Internacional, algo muito diferente do Ius Gentium, já que, como seu nome mesmo indica, parte da soberania, concebida ao modo revolucionário dos Estados nacionais para culminar em uma potestade normalizadora de índole sinárquica que vai instaurando a nova ordem mundial.
Baseados nestes critérios que a ONU – no caso concreto proposto neste artigo – foi buscar supedâneo para se colocar acima das soberanias pátrias e tentar impor coativamente a legalização do aborto às nações de todo mundo, inclusive sob pena de sanções econômicas em caso de oposição a suas determinações, em total desrespeito a suas tradições históricas.
O plano de arquitetura universal que vem sendo emergido pela ONU e seus corolários UNESCO, OMS, que muito em breve regerá as Constituições de todas as nações, já foi elaborado desde há muito, daí ter afirmado o filósofo Olavo de Carvalho em seu prestigioso artigo, que “décadas de manipulação sorrateira tornaram as nações suficientemente passivas para curvar-se, sem o mais mínimo questionamento, à imposição ostensiva de uma nova lei moral, contrária a tudo em que acreditaram durante séculos ou milênios”.
No mundo de hoje, quando as elites se tornaram tecnocratas, encontramos entre os governantes dois tipos de técnicos: os que procuram condicionar as coisas e os que procuram condicionar os espíritos. Para esses últimos, a propaganda, hábil veículo moderno, encarrega-se de reduzir os homens a um mesmo denominador comum, para que aceitem as coisas tal como vem sendo condicionadas . A sociedade passa a ser simplesmente o resultado de um organograma e de uma planificação, suprimindo-se paralelamente qualquer esforço no sentido de restaurar-se as atividades contemplativas e morais do espírito.
É aqui que intervém a publicidade, a propaganda, o martelar dos cérebros. Persuadidos de que as bexigas são lanternas, porque eles se divorciaram do verdadeiro bem, nossos contemporâneos querem estar seguros e certos de que sua doença é a saúde. Por isso espalham em torno de si o contágio. Querem que suas aberrações sejam universais e a publicidade lhes fornece o meio para tal inversão fixando-lhes a atenção sobre a imagem da realidade e não sobre a realidade.
Dentro desse clima, o direito já não é apresentado como um ideal, não sendo mais que mero instrumento, como o é para doutrina marxista.
Note-se que o fundamento da sociedade kelseniana não é a “verdade”, senão o respeito a liberdade do indivíduo e o princípio da igualdade em face da lei de todas as religiões e opiniões, desbocando, portanto, na forma mais perniciosa de relativismo que hoje predomina em todos campos do conhecimento. Logo, para Kelsen e Kant, não é a “verdade” que nos torna livres, com diz a escritura, e sim a liberdade que nos torna verdadeiros.
Infere-se do exposto que a modernidade se caracterizou por uma progressiva aniquilação da realidade, através, quer do Contrato Social, quer de um processo de desconstrução do real, que se tornou operativo.
O certo, é que, o Estado edificado nas areias movediças da dissociedade, ou seja, de indivíduos isolados, substitui a tradição e a experiência por doses de ideologias com as quais justifica sua obra de manipulação.
Concluindo. Em face desse processo de destruição do real, onde o mundo só é mundo se for obra (artificial) da mente humana, que vai corroendo as bases mais sólidas das nações, ou seja, sua tradição, sua cultura, sua religião, é que infere-se que tal atitude preconizada pela ONU é um processo inevitável, que gradativamente vai ser aceita como válida, moral e juridicamente.
E se as nações já não são pátrias (terra dos pais), se já não encerram nenhum elemento sagrado (se é apenas coexistência laica), quem é o Estado (hoje totalmente laico, sem nenhum vínculo com o transcendente) para determinar que uma lei que permita o aborto é imoral, contra Deus, contra a natureza e que as leis civis não podem admitir? Só nos resta, infelizmente, esperar o pior (a eutanásia, legalização do uso entorpecentes, etc.), tudo em nome da liberdade, da igualdade, dos direitos do homem, da Deusa Razão, da Revolução dos costumes. Em suma da morte de Deus.
Rita Rauber Peter é acadêmica de direito em Foz do Iguaçu-PR.