Da leitura do episódio que marcou a Operação Arrego, na semana passada, extrai-se muito mais do que o reconhecimento da eficiência do Ministério Público, por meio do Grupo de Apoio e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), e das Polícias Civil e Militar de Mato Grosso. Chega-se a uma conclusão imperativa: no período de um ano, sete meses e cinco dias em que João Arcanjo Ribeiro esteve preso, as autoridades subestimaram a inteligência do chefe do crime organizado no Estado.
Aliás, o poder de fogo do “comendador” começou a ser desdenhado há umas três décadas, quando o humilde (?) policial civil trocou os “bicos” que fazia como segurança pela exploração do jogo do bicho.
A história do sucesso do cidadão todo mundo sabe de cor, inclusive, a parte mais grotesca da sua ascensão ao comando do crime – uma das fases mais violentas do Estado -, supostamente com o apoio oficial. Consta que foi nas duas gestões do PSDB no Governo (1995-2002) que ficou evidente o temido “Poder Paralelo”, sob a chefia do famoso JAR.
O desfecho da Operação Arrego, ao descobrir que Arcanjo comandava a jogatina de dentro de uma cela em Pascoal Ramos, na terça-feira (16), não surpreendeu. Só confirmou uma suspeita: ele recuperara o fôlego e voltara a fazer o que fazia com maestria quando se sentia dono do Estado. Ou seja, exercitar seus poderes sinistros, intimidando quem contrariasse seus “negócios” e corrompendo servidores públicos.
É sintomática a afirmação da promotora Eliane Maranhão, uma das líderes da citada operação, numa entrevista: “O jogo do bicho nunca acabou no Estado. Teve uma queda após a Arca de Noé (operação que, em 2002, demoliu o império do ex-bicheiro), mas depois se reergueu”.
Estranha, no entanto, era a devoção que certas pessoas tinham para com a figura de Arcanjo. Afinal, na prisão, conforme apurou o Gaeco, o “comendador” vivia como um rei: dispunha de aparelho de tevê, rádio, revistas e livros e usufruía do direito (?) de encomendar refeições delivery ou receber alimentos preparados por familiares. Como tanta mordomia assim, bancada com o meu, o seu, o nosso dinheiro, era natural que ele buscasse mover céus e terra – e, inclusive, tribunais – para permanecer no paraíso – quer dizer, no doce lar de Pascoal.
A propósito, uma reportagem especial que este Diário publicou em março deste ano confirma que Arcanjo exerceu, de fato, poder dentro da prisão. Ao completar um ano preso, o ex-bicheiro contabilizava um saldo positivo: obtivera mais conquistas do que derrotas na Justiça. Da redução de pena à recuperação de bens, o “comendador” conseguiu afastar um juiz federal de suas causas e livrar-se da transferência para outras partes do país e de se submeter ao rigor do Regime Disciplinar Diferenciado; teve anulada uma sentença de sete anos por porte ilegal de armas. E dos crimes de mando de assassinato – nove vítimas, no total –, tivera, até então, só uma pronúncia, no caso de maior repercussão contra ele: a morte do empresário Sávio Brandão, dono do jornal “Folha do Estado”.
Em julho, o TRF, sob o relato do desembargador Tourinho Neto, impediu a transferência de Arcanjo para o cárcere da PF de Brasília e, depois, para a Penitenciária de Catanduvas (PR), primeira federal de segurança máxima, onde todos estão inseridos no RDD. O mesmo TRF, com o relato do mesmo juiz Tourinho, no final de julho, reduziu em 25 anos (foi para 11 anos e quatro meses) a pena do ex-bicheiro pelos crimes de lavagem de dinheiro, ocultação de bens e formação de quadrilha, estipulada pela Justiça no Estado em 37 anos em regime fechado. Em março de 2006, ao voltar ao Brasil, Arcanjo tinha o total de 49 anos de prisão, mas outra vitória (no mesmo TRF) levou à redução para 16 anos e quatro meses em regime fechado, um ano depois da sua chegada.
Hoje, JAR vive sob o rigoroso regime das prisões federais, em Campo Grande (MS): não tem mais as mordomias estatais, teve a cabeça raspada, trocou as roupas de grife pelo tradicional uniforme amarelo de presidiário e come o pão que o diabo amassou… Por aqui, entristecidas, ficam as suas notórias “viúvas”: a noiva que foi sem ter sido; colunistas sociais, que, a pretexto de bajulá-lo, faziam as vezes de assessores de Imprensa; políticos cujas campanhas foram patrocinadas pelo dinheiro sujo da contravenção – entre eles, um tucano arrogante e petulante que caminha para o limbo político;– e policiais desonestos. A propósito, é curioso como Arcanjo tem uma atração fatal por policiais. E a recíproca parece ser verdadeira.
A pergunta que não quer calar: até quando ficaremos livres do mafioso?
Antonio de Souza é jornalista em Cuiabá.
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