Clarice e Cecília: gestos de indiferença
Carlos Alberto de Lima*
“Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz”. A frase não é de Clarice. Julguei que fosse. Lembrei-me dela ontem à noite e disse a uma amiga que, assim como eu, também adora Clarice. Depois passei a noite em claro, azedando os meus sentimentos por conta daquele equívoco: a frase é de Cecília em “A Arte de ser Feliz”.
“Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto”. Quanta coisa bonita escreveu também Cecília! “Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse”. Cecília escrevia com a alma.
“E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz”. Ser feliz é mesmo uma arte e, assim como Clarice, Cecília sabia disso muito bem. Talvez por isso eu tenha confundido o que foi escrito por Cecília, com o que poderia ter sido escrito pela Clarice que, também, quando escreveu sobre o amor, em “Laços de Família”, foi maravilhosa ao incluir na história um cego que mascava chicles. E esse cego, fez com que Ana, personagem chave da história de amor de Clarice, acabasse mudando a sua rotina que antes parecia imutável.
Clarice Lispector e Cecília Meireles continuarão sendo para mim, e talvez para a minha amiga, adepta de uma boa leitura e dona de uma mente hipersensível às coisas boas, as duas maiores escritoras de todos os tempos.
Pela manhã, consegui cerrar os olhos e neutralizar a mente o suficiente para protagonizar o meu dia. Um dia que poderia ter sido
normal como os outros. Não rotineiros como os de Ana antes de ver um cego que mascava chicles ou como os dias daquele pobre que espargia água sobre as plantas, garantindo-lhes a vida, em “A Arte de ser Feliz”.
Um dia que poderia ter-me sido normal, não fosse um pequeno incidente, um ato quase insignificante, um pequeno gesto de indiferença que, por ser de indiferença, foi, para mim, um gesto monstruoso. Não fui ignorado como se ignora uma folha seca que cai do galho de uma árvore já sem vida. Teria sido melhor se assim o fosse. Foi apenas um gesto de indiferença que, por ser de indiferença, doeu em mim e doeu no meu dia.
Soube depois que aquele gesto, que aquele olhar de indiferença, fora por conta de um artigo. Do artigo: “Erradas Coisas” que escrevi dias atrás. Um artigo que não falava de um jardim vitalizado por um pobre de dedos magros; um artigo que não falava de um cego que, por mascar chicles, transformara a vida de Ana, mas um artigo que falava de certos valores da vida, principalmente do valor da dignidade humana que não edita medidas que favoreçam uns e desfavoreçam outros…
Por conta daquele artigo, recebi inúmeros parabéns em incontáveis mensagens on-line, alguns telefonemas de elogios e alguns abraços de cumplicidade. Mas também, por conta daquele artigo, recebi aquele gesto de indiferença: um único gesto de indiferença que me machucou no fundo da alma. Felizmente, para (des)machucar-me, veio-me Clarice: “O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades”. Depois Cecília: “Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino”.
Gostaria de saber escrever como sabiam Clarice e Cecília para, quem sabe, receber apenas elogios. Elogios das pessoas sábias e íntegras. Das demais, talvez, apenas gestos de indiferença.
Carlos Alberto de Lima é jornalista em Alta Floresta
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