Domingos Iglesias Valério, aos 79 anos, deixou a coordenação da Defesa Civil, após décadas de dedicação a Mato Grosso. A exoneração dele, único sobrevivente de todas as trocas de mandatos desde 74, é explicada tecnicamente pelo governo, mas nem por isso provoca menos surpresa. Não pela demissão em si – ele já estava aposentado – mas pela forma como foi feita. Em respeito a uma história de integridade e obstinação, que poucos conseguirão numa carreira de servidor público, Iglesias merecia, penso eu, uma saída em grande estilo.
Quem conviveu profissionalmente com este senhor tem pelo menos uma idéia do que estou falando. Para nós jornalistas, ele é “a figura”. Reconhecido nacionalmente como autoridade em recursos hídricos, o “doutor Iglesias” tem lá suas ranzinzas que, ao final, nos causavam riso e graça. Existe uma porção de boas histórias dele com a equipe de A Gazeta. Doutor Iglesias, já com idade avançada e pouca paciência, não suportava receber um repórter que não entendesse o que é uma sizígia, um equinócio da primavera, o El Niño e a La Niña. Certa vez me pediu delicadamente para mandar uma jornalista “melhorzinha” para entrevistá-lo. “É que eu fico cansado de explicar”, justificou.
Ao mesmo tempo que rejeitava alguns, tinha as preferências. Quando gostava, era dia rendido, reportagem boa. Afinal, quem melhor do que o doutor Iglesias para falar sobre o rio Cuiabá, sobre a Usina de Manso e os reflexos ambientais do empreendimento, enchentes, área de risco na Capital e em diversas cidades do interior? A autoridade, o mineiro simples de Pitangui, criado em Nova Lima, agora pertencente à chamada Grande BH (Belo Horizonte), é um mestre, respeitado por pesquisadores do país inteiro. Se hoje fazer a transposição do rio São Francisco causa polêmica, imagine propor isto no início dos anos 70? Pois é, Iglesias defendeu a tese há mais de três décadas.
Por um bom tempo entrar na Coordenadoria da Defesa Civil era transpor as portas de um mundo à parte. Na porta, um cartaz escrito a mão indicava atendimento à imprensa só após as 16, uma hora fatal por conta do fechamento dos jornais e programas de TV, mas fazer o quê? Rompida a barreira do horário, estava lá Iglesias sentado à frente da mesa, em meio a mapas e uma papelada sem fim. Ao lado, uma campainha enferrujada daquelas antigas de repartição, usada para chamar a secretária. De outro, um pedaço de rapadura que ele roía. Repórter “inteligente” tinha o privilégio de dividir a guloseima com o doutor Iglesias. Ou quem sabe comer bolacha Maria, uma das preferidas.
A passagem pela Defesa Civil não parava por aí. Tome aula de geografia. Você não sabe onde nasce o rio Cuiabá? Não? Que barbaridade!… E caminhava rumo ao mapa amarelado na parede com o monitoramento do nível o rio desde a famosa enchente de 74, que foi quem acabou levando Iglesias para o governo. Preste atenção na cota de emergência… menina! Enquanto informava, na mesma parede podia-se ler cartazes com lições e pensamentos de Aristóteles, por exemplo. Já em ocasiões em que a Umidade Relativa do Ar (URA) baixava a níveis preocupantes, doutor Iglesias, “a figura”, dava entrevista com um lençol umedecido amarrado ao rosto e sugeria ao repórter fazer o mesmo.
Gostaria de continuar, passar horas que fosse contando casos que vivi e que sei deste homem nos últimos 20 anos que estou em Cuiabá, mas não é possível. Despeço-me, aqui doutor Iglesias, com carinho, garantindo que fiz o possível para “revisar o vernáculo” (esta expressão era colocada por ele em cada final de boletim emitido pela Defesa Civil). Não posso me estender, mas é importante também lembrar o trabalho de Iglesias na Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Pai zeloso de um filho portador de Síndrome de Down, ele levantou a bandeira das crianças especiais.
Margareth Botelho é jornalista e Diretora de Redação de A Gazeta