Você bem sabe o que o deputado Arthur do Val disse no áudio que uniu o Brasil, desnecessário repetir. Na verdade, só teria utilidade pra aumentar a sua repulsa por ele, mas a proposta aqui é outra. Acredite: não é porque eu gosto do Mamãe Falei – na verdade, desde que me lembro tenho antipatia por ele e pelo MBL. Sempre considerei a militância de ambos uma protagonista da polarização que transformou a política na briga de torcidas que nos trouxe ao abismo atual.
Meu ranço tinha também um motivo pessoal: em 2017, o Arthur veio a Cuiabá dar uma palestra em frente à Câmara Municipal. E eu fui lá para desmascará-lo, tal qual ele sempre fez. Eu tinha amigos no MBL aqui da cidade, então não tive dificuldades para pegar o microfone. Até poucas horas atrás, a minha única lembrança era que interromperam o meu discurso, e que Mamãe Falei me deu uma invertida na frente daquelas dezenas de pessoas – era uma recordação ultrajante!
Quando os áudios vieram à tona na última semana, lavei a égua. Compartilhei freneticamente memes e as reportagens sobre as desgraças que iam se abatendo sobre ele: abandonado pela namorada e por Sérgio Moro, fora do partido e do MBL, e com pedidos de cassação chegando por todos os lados, o ex-pré-candidato ao Governo de SP estava recebendo o que merecia, pensei – e talvez você pense o mesmo. Meu ranço pessoal me dava ainda mais justificativa.
Nesta madrugada, insone, decidi revirar meus arquivos atrás do vídeo daquele dia pois, se eu fui àquela palestra na intenção de quebrar os argumentos do Arthur, provavelmente eu havia filmado. Achei o vídeo! Expectativa: aquela humilhação de outrora seria agora uma bela cicatriz para provar que sempre estive certo sobre Mamãe Falei. Realidade: bastou assistir uma vez só pra sentir o balde de água fria se derramar sobre mim. Não havia nada ali que me desse razão.
O vídeo tremido mostra meu nervosismo em fazer o que Arthur faz com naturalidade: estar em um ambiente hostil pronto para ser escorraçado. Meu discurso não fazia sentido, falei minutos seguidos sem chegar a lugar algum. Por fim, a “lavada pública” que me lembrava de ter tomado sequer foi desrespeitosa. Pra piorar, havia outro vídeo de depois do evento, no qual ele me parabenizava em particular pela coragem de participar daquele debate. Creio que por saber como era estar do outro lado.
Meu ranço escorreu pelas pernas. No lugar da convicta justiça própria no apedrejamento, uma percepção amarga de dissonância cognitiva – um constrangimento que eu certamente poderia levar pro túmulo, mas confessá-lo neste artigo será didático pra mim, e pode ser útil pra você. São inequivocamente condenáveis os áudios do Mamãe Falei, isso é ponto pacífico: de escroto pra baixo, não faltam adjetivos. Mas agora vamos refletir na contramão desse crucifiquem-no.
Tenho a mesma idade do Arthur. Não somos jovens, senão no meio político: quem tem a nossa idade em posição semelhante à dele, salvo raras exceções, é uma tartaruga em cima da árvore – alguém a colocou lá. Pra quem não é apaniguado de cacique, herdeiro político ou milionário, ser eleito é um desafio. Por mais que discorde do modus operandi do MBL, preciso reconhecer que eles foram extremamente bem sucedidos em hackear o processo eleitoral; self made men.
Salientado esse mérito, uma conclusão se impõe: se Mamãe Falei não representa interesses da carcomida classe política brasileira, pois não foi eleito por eles, então Arthur compõe a minoria independente o suficiente para enfrentar os lacaios da corrupção que os sustenta – gente cuja aparente moralidade encobre de furto do dinheiro público aos assassinatos que este causa nas filas dos hospitais. Então não é por acaso essa unanimidade pra cassar seu mandato na ALESP.
Há outros dois fatores pesando para sua potencial cassação. Um é o mesmo apetite por treta que o alçou ao cargo, multiplicando seus desafetos no plenário; se eu torci por sua derrocada, imagine alguns de seus colegas. E há algo de educativo em uma crise de imagem da magnitude que Mamãe Falei vive: empatia. Não digo conivência com o errado, mas a moderação na sanha por sangue. Depois disso tudo, Arthur pensará muito antes de debulhar outro ser humano, né?
Outro fator somos nós, a opinião pública. Daqui poucos meses, os deputados que votarem por sua cassação vão estar na briga para se reeleger – e além de tirar um concorrente bem votado em 2018 do páreo, quem deles quer contrariar o clamor popular em ano eleitoral? Um presente, na verdade: Mamãe Falei pode ser um babaca, mas não acredito que seja corrupto; para destruir políticos que não roubam, é recorrente explorar controvérsias de suas vidas pessoais. Um áudio de Whatsapp, por exemplo.
Reitero: Arthur errou feio, errou rude. Não estou passando pano. Mas, com a exceção de Jesus, jamais houve ser humano que não se envergonhe de algo que já tenha feito, dito ou pensado, incluindo eu mesmo. A questão é que sua vergonha veio a público, e em meio à exposição midiática de uma viagem inconsequente e eleitoralmente oportunista à Ucrânia, um país em guerra. Vamos linchá-lo? Ok, então que atire a primeira pedra quem… Putz, eu mesmo já atirei várias.