Quando eu era criança, sempre me encantei por ciência, e talvez esse tenha sido o principal fator de transformação em minha vida. Para minha sorte, próximo a minha casa, em Chapada dos Guimarães, em algumas localidades, caso você tenha os olhos bem atentos, pode encontrar fósseis de invertebrados marinhos, como braquipodes (Conchinha). Isso sempre me fascinou. Porém a realidade brasileira nem sempre proporciona a mesma sorte para todos. O acesso a coleções cientificas e museus ainda algo restrito, em especial para comunidades distantes e para pessoas de baixa renda.
Gostar de ciência talvez seja o primeiro passo para transformar a educação em algo muito mais gostoso. É tão interessante olhar o mundo e compreender como ele funciona e como as coisas são feitas, tentar sentir o desafio posto pelas perguntas ainda sem respostas que marcam a fronteira do conhecimento. Mas para aqueles brasileiros que vêm de famílias pobres ou da extrema pobreza, para conseguir avançar neste caminho é preciso conciliar desde muito cedo o estudo e o trabalho. Outras vezes até mesmo acesso a itens básicos como água e luz são incipientes ou não existem, o que torna tudo mais difícil.
Digo isso pela minha própria experiencia de vida. A residência da minha família começou a ter acesso a luz quando tinha 10 ou 11 anos, o acesso a água às vezes também não funcionava da melhor forma, e era comum ter que buscar água no riacho para o uso diário. Pelo cenário posto o leitor deve imaginar que a condição socioeconômica de meu núcleo familiar não era das melhores. Estatisticamente estávamos, em termos de renda per capita, em algum lugar ali entre a pobreza e extrema pobreza. Devido a tal cenário, nem me lembro ao certo a idade que comecei a trabalhar, seja em serviços na roça ajudando minha mãe, ou mesmo vendendo jornais, picolé, frutas, cuidado de jardins, fazendo e vendendo pães, dentre muitos outros serviços ou atividades informais. Porém, sempre tentei, na medida do possível, manter o foco nos estudos.
Quando tinha 13 anos, no primeiro ano do ensino médio, fui contemplado com uma bolsa de iniciação científica, em um projeto chamado Iniciando na Arqueologia. Esse projeto me motivou a fazer a prova do CEFET-MT. Fiz a prova e passei, e aos 14 anos estava em Cuiabá, morando sozinho e com a missão de me sustentar em uma capital, com uma bolsa de estágio e alguns bicos. Essa bolsa de estágio, única política de assistência estudantil que na época existia no CEFET, era uma refeição de 500g por dia. Me lembro que eu e alguns colegas, de situação econômica similar, conseguíamos pesar com as mãos o peso do prato para não passar o peso estabelecido, pois se passasse tinha que pagar a diferença, e a gente não tinha dinheiro para isso. Durante os meus dois anos no CEFET morei em 8 lugares, em alguns casos de favor, com gente que mal conhecia.
Consegui dos 16 para 17 anos passar na Universidade Federal de Mato Grosso, no Curso de Geologia. Lá, devido às políticas de assistência estudantil, comecei a ter acesso a condições de vida um pouco melhores. Tive acesso à casa do estudante, que dava segurança de um teto, e ao restaurante universitário, que possibilitava o acesso a almoço e janta de baixo custo. Outras políticas estudantis me ajudaram a conseguir participar de congressos e outras atividades cientificas, fundamentais para minha aprendizagem e construção do meu currículo. Porém, durante toda a faculdade, tive que conciliar também estudo e diversos tipos de trabalho, isso porque quando você vem de uma família sem dinheiro, tudo na sua vida depende de você mesmo.
Dos 21 para 22 entrei no mestrado. Pela primeira vez tinha acesso a uma bolsa que conseguia me garantir uma certa tranquilidade. Durante esse período, consegui fazer um intercambio na Universidade de Lisboa e começar a me dedicar a sanar falhas no meu processo educacional, como por exemplo, o estudo de idiomas. Terminei o mestrado e passei em um concurso para professor na UFMT em 2015. Aos 25 anos estava eu lá como docente na instituição em que tinha feito a graduação e mestrado. Logo nos primeiros meses como professor, junto com outros professores, começamos a realização de projetos de popularização e divulgação cientifica, para que, quem sabe, outras pessoas pudessem ser incentivadas a se apaixonarem pelas ciências também. Desde então sigo essa missão de divulgar a ciência.
Agora em 2021 estou fazendo um doutorado cotutela pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e pela Universidade Tubingen (Alemanha), talvez algo bem impensável para minha realidade há 20 anos. Embora me orgulhe de ter conseguido fazer essa difícil e complicada trajetória, pouco falo sobre ela, pois normalmente isso é usado como exemplo de superação e de afirmação de que é possível romper barreiras sociais. Mas quantas pessoas ficam para trás neste caminho? Às vezes, quando me perguntam sobre minha trajetória, digo que nunca pude errar e sempre tive que me dedicar ao máximo, qualquer detalhe mínimo poderia ter feito meu caminho ser totalmente diferente.
Eu decidi escrever esse texto após ver um vídeo da Tabata Amaral, onde ele conta alguns dos desafios vividos por ela para ter acesso a boas oportunidades na educação. Embora discorde de alguns posicionamentos da deputada, uma coisa é fato: só é possível pensarmos em uma país desenvolvido no futuro se o acesso à educação e ciência for garantido para todas as pessoas. Esse acesso não existe sem que se sejam enfrentados os problemas sociais que marcam a pobreza e extrema pobreza.
Quero em um futuro próximo, ver que o acesso a ciência e ao desenvolvimento educacional seja para todos. A educação é a melhor e maior ferramenta de transformação. Conseguir avançar nos estudos precisa ser regra e não exceção. E para isso precisamos pensar e construir políticas públicas que torne esse caminho algo mais fácil, e não uma longa e difícil jornada.
Caiubi Kuhn, Professor na Faculdade de Engenharia (UFMT), geólogo, especialista em Gestão Pública (UFMT), mestre em Geociências (UFMT).