O Ministério Público Federal (MPF) e mais cinco organizações da sociedade civil enviaram, ontem, uma representação ao Tribunal de Contas da União (TCU) pedindo a suspensão cautelar do processo de desestatização e a proibição da licitação da Ferrogrão. A justificativa é que a ferrovia, projetada para cortar os estados do Mato Grosso e do Pará, entre os municípios de Sinop e Itaituba, tem potencial impacto sobre 48 territórios de povos indígenas.
O MPF diz que o governo brasileiro se recusa a realizar consulta aos povos afetados, mesmo tendo recebido pelo menos oito pedidos de associações indígenas, duas recomendações e depois de ter se comprometido a respeitar o direito de consulta prévia, livre e informada previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“A legitimidade do pleito dos povos indígenas e comunidades tradicionais pelo cumprimento de seus direitos de consulta e consentimento livre, prévio e informado acerca dos efeitos regionais da ferrovia na etapa de planejamento do projeto ferroviário é inquestionável e precisa ser atendido com urgência dado que o processo de concessão já se encontra em análise pelo TCU”, diz a representação.
Segundo o Ministério Público, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável pelo projeto da ferrovia, assumiu o compromisso, em audiência pública e por escrito, de realizar a consulta prévia aos indígenas antes de enviar o processo de concessão da Ferrogrão ao TCU para análise. O compromisso foi assumido pelo então presidente da ANTT, Alexandre Porto, que disse, durante audiência em Brasília, em 12 de dezembro de 2017, e reiterado, posteriormente, em documento que consta do processo de concessão.
No entanto, de acordo com o MPF, as consultas nunca foram realizadas e no dia 13 de julho de 2020 o Ministério da Infraestrutura encaminhou para análise do TCU o processo de concessão da Ferrogrão, também chamada EF-170. Ao mesmo tempo, também tramita o processo de licenciamento ambiental da ferrovia junto ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e há previsão para que a licitação da estrada seja feita no final do ano, com emissão de licença prévia no primeiro semestre de 2021.
Na representação, o MPF e as entidades alegam que o planejamento governamental desconsidera totalmente os impactos sobre os indígenas, que já foram detectados pelos primeiros levantamentos, e viola direitos reconhecidos nacional e internacionalmente desses povos.
“Os estudos até então realizados que embasam o modelo de concessão, a minuta de edital e o próprio leilão, bem como a ausência de consulta prévia, livre e informada, poderão legitimar grandes e irreversíveis danos ao meio ambiente (água, fauna, flora, vestígios arqueológicos e históricos) e às populações indígenas, quilombolas e tradicionais, bem como à ordem urbanística das cidades pelas quais a ferrovia se estenderá, ou mesmo poderá camuflar a inviabilidade econômico-financeira (na perspectiva da economicidade) do próprio empreendimento”, diz o documento.
Na representação, o MPF alerta o TCU de que impedir a participação dos indígenas no planejamento da ferrovia pode provocar o subdimensionamento dos custos socioambientais, camuflando uma possível inviabilidade ambiental, mas também financeira, do projeto. De acordo com os levantamentos iniciais, foram identificados potenciais impactos sobre o conjunto de terras do povo Munduruku nas regiões do médio e Alto Tapajós; sobre as terras dos povos Panará, Kayapó e Kayapó Mekragnotire, no sudoeste do Pará.
Os potenciais impactos incluem invasões das terras indígenas, aumento do desmatamento, evasão das aldeias para centros urbanos e até o incremento do alcoolismo entre jovens indígenas. Os problemas, conforme explicado na representação, também podem atingir seis terras indígenas no Mato Grosso, incluindo áreas de povos isolados e o Parque Indígena do Xingu.
Para o MPF e as organizações da sociedade civil, não se pode excluir a participação das comunidades tradicionais afetadas da fase de análise sobre a viabilidade de um grande empreendimento. “É inconstitucional, inconvencional e ilegal a exclusão da participação das comunidades afetadas”.
A representação pede ao TCU que emita medida cautelar suspendendo o processo de privatização da Ferrogrão e proibindo a licitação da ferrovia enquanto não forem realizadas as consultas aos povos indígenas afetados. O documento é assinado pelo MPF, Instituto Socioambiental (ISA), Associação Iakiô, do povo Panará, Associação da Terra Indígena do Xingu (Atix), Instituto Raoni, do povo Kayapó, e Instituto Kabu, do povo Kayapó Mekragnotire