O padre austríaco Johann Dornstauder definiu de forma simples e objetiva as diferenças entre o universo indígena e não indígena: “somos dois mundos diferentes”. Dornstauder se dedicou por décadas ao trabalho missionário junto aos povos indígenas do Noroeste de Mato Grosso, tendo como justificava a integração e preparação do indígena para o processo de desenvolvimento econômico.
Essa perspectiva sobre nossas relações é um excelente ponto de partida para discutir os desafios que os povos indígenas enfrentam diante da pandemia de Covid-19. O modo, as estratégias e as ações de enfrentamento à pandemia nas comunidades indígenas precisam ser diferenciados, pois o universo deles tem valores e modo de pensamento diferentes, são “dois mundos diferentes”. Os poderes instituídos precisam atuar de maneira firme e presente para preservar a vida destas pessoas.
É importante compreender que, diferentemente do que ocorre para a maioria das nossas gerações, enfrentar doenças devastadoras não é novidade para as populações indígenas. O contágio em massa por agentes patogênicos acompanha a história dos povos indígenas do continente americano. A gripe e o sarampo reduziram ou dizimaram povos, facilitando o domínio de seus territórios e exploração dos recursos naturais.
Em minha pesquisa sobre conflitos na fronteira, convivi por quatro anos com os índios Rikbaktsa, conhecidos como “os canoeiros do Juruena”, e escutei muitos relatos sobre a mortalidade indígena causada por epidemias. O pesquisador Rinaldo Arruda produziu estudo específico sobre o tema e apontou as epidemias como a principal causa de morte desta etnia na região.
Os Rikbaktsa tiveram os primeiros contatos com não indígenas apenas em 1957. Após esse contato, o pesquisador Robert Alfred Harn identificou pelo menos um surto de sarampo e um de gripe entre os Canoeiros. Em função das doenças, este povo sofreu uma drástica redução populacional, chegando a beirar a extinção. De cerca de 1.500 indivíduos em 1957, eles foram reduzidos para aproximadamente 300 em 1969. Foi necessário meio século para eles se restabelecerem: apenas em 2014, de acordo com a Sesai – Secretaria de Saúde Indígena – sua população voltou a registrar cerca de 1.500 pessoas. Os Beiço de Pau, guerreiros do vale do Arinos, tiveram destino ainda mais trágico e acabaram extintos.
A Pandemia de Covid-19 reaviva nas memórias dos indígenas o drama sofrido no passado com as epidemias e coloca todas as comunidades diante de novos desafios.
O primeiro desses é a volta ao isolamento, só que dessa vez de forma e com significado bastante diferentes daquilo que compreenderam como isolamento algum dia. A comunidade Rikbaktsa tomou a decisão de bloquear a única estrada que dá acesso à sua terra indígena. Uma porteira com cadeado foi instalada de modo a evitar a entrada de pessoas e minimizar o risco de contágio.
Essa decisão traz problemas em relação ao abastecimento. Ao longo das últimas décadas os Canoeiros, assim como diversos outros povos, deixaram de ser autossuficientes. Eles ainda praticam a roça tradicional, a coleta, a caça e a pesca, atividades que continuam sendo a principal fonte de alimentos para as famílias. Mas o consumo de determinados gêneros industrializados tornou-se habitual e necessário. O problema é que esses produtos são adquiridos nos supermercados da cidade.
Recentemente recebi a informação de que um supermercado da cidade de Juína providenciou um carregamento de mercadorias para ser vendido na porteira dos indígenas. O contato com os entregadores, assim como com as embalagens das mercadorias expõe a população a riscos, podendo levar o vírus para a comunidade e causar novas tragédias.
Mesmo que a Funai tenha assertivamente proibido o acesso às terras indígenas, é difícil realizar o controle em função da pouca estrutura do órgão. As políticas indigenistas não têm sido prioridade desse governo, assim como não foi em diversos outros ao longo da história.
Outro desafio dos indígenas foi denunciado pela pesquisadora do Instituto Federal de Mato Grosso, Fernanda Oliveira Silva, no artigo “Bolsonarismo e a COVID 19: Um cenário que atualiza uma política estatal de extermínio dos indígenas”. O descaso, os discursos e a inércia do atual Governo com as políticas indigenistas estão tornando mais frequentes as invasões de terras por madeireiros e garimpeiros. Essa situação ameaça a vida dessa população em decorrência dos conflitos que resultam e agora trazem também a ameaça da entrada do novo coronavírus.
Segundo informações dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, até o dia 22 de junho o país já contabilizava 4.235 indígenas infectados com o novo coronavírus e 119 óbitos. Em Mato Grosso, são 61 casos registrados e duas mortes.
De nossa parte, o Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT) tem contribuído como pode para amenizar os danos a essas populações no Estado. Assim como está ajudando prefeituras e outras instituições, o IFMT também está distribuindo álcool 70 e em gel, máscaras, água sanitária, sabão e sabonete líquido para diversas comunidades indígenas em Mato Grosso.
Espera-se das autoridades competentes que a população indígena receba atenção especial neste momento crítico. Sabemos que, por enquanto, o melhor tratamento para o coronavírus é o isolamento social. No entanto, depois de uma história de colonização, os povos indígenas precisam de apoio para que o isolamento não cause falta de abastecimento e fome. Ressalto e cobro junto com tantos outros agentes defensores das causas indígenas a atuação firme e eficiente dos poderes instituídos.
Quanto aos Rikbaktsa, povo com o qual mantenho contato devido a minha experiência de pesquisa, ainda não foi registrado nenhum caso da doença na comunidade. Mas se ela chegar, será enfrentada com a experiência e seriedade de um povo que carrega em sua história os traumas de quase ser dizimado por outros vírus no passado.