O Ministério Público Federal pede que seja mantida a decisão que condenou o diretor e o gerente de uma empresa por reduzirem cerca de 400 trabalhadores à condição análoga à de escravos, em uma destilaria em Confresa (1.168 km de Cuiabá). Os réus recorreram ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) para reverter a sentença que estabeleceu uma pena de 12 anos de reclusão e 360 dias-multa para cada.
Segundo a denúncia, julgada parcialmente procedente pela 5ª Vara Federal de Mato Grosso, os dois envolvidos associaram-se, em abril ou maio de 2005, com a finalidade de aliciar e trazer mais de 400 trabalhadores do estado do Maranhão para o corte de cana nas lavouras da empresa. Depois, submeteram os lavradores a trabalhos forçados, jornadas exaustivas e condições degradantes, condutas essas que, segundo o juiz João Moreira Pessoa de Azambuja, individualmente consideradas, já seriam suficientes para caracterizar o delito previsto no artigo 149 do Código Penal.
De acordo com a assessoria do MPF, a denúncia descreve acomodações sem ventilação, espaço físico ou limpeza adequados, acidentes de trabalho por causa do facão "escapar" e acertar os pés dos trabalhadores que, sem dinheiro para comprar botas, trabalhavam descalços. "Não há dúvidas da existência de diversos acidentes de trabalho no cotidiano da usina devido à ausência de proteção mínima aos obreiros e por conseguinte da condição degradante à qual se submetiam os trabalhadores, tendo em vista que eram deliberadamente expostos a toda sorte de riscos durante a colheita", estabeleceu a sentença.
O juiz também observou a má qualidade da alimentação fornecida, que estragava por vários fatores: o forte calor, o tempo excessivo entre o momento de produção e da efetiva entrega aos trabalhadores e a grande distância percorrida pelos obreiros entre as frentes de trabalho e os locais onde eram deixadas as marmitas, aumentando o tempo de exposição dos alimentos ao ambiente. "Nas imagens, é possível ver alguns trabalhadores sentados no chão ou sobre a cana cortada, outros de pé, porém todos, sem exceção, expostos ao sol, sem nenhum tipo de abrigo para que se alimentassem com o mínimo de conforto possível, situação próxima a um estado animalesco", disse.
Sobre os alojamentos, foi verificado calor excessivo dentro dos dormitórios, ausência de camas suficientes para todos os obreiros, permissividade da empresa em deixar que trabalhadores utilizassem redes para dormir, a falta de ventilação e higiene adequadas. Fotos evidenciam que, caso optassem pelos alojamentos da usina, os trabalhadores tinham que ficar em ambiente escuro, insalubre e de baixo nível de limpeza.
Para o Ministério Público Federal, ficaram configurados a autoria, a materialidade e o dolo do delito do artigo 149 do Código Penal, devendo ser mantida a condenação nos termos da sentença. "A tolerância quanto aos fatores degradantes e insalubres a que eram expostos os obreiros somente contribui para a permanência do grave quadro de trabalho indigno vislumbrado no Brasil", escreveu a procuradora regional da República Michele Rangel Vollstedt Bastos.
Segundo ela, não se deve tachar de normalidade a ocorrência dos inúmeros acidentes de trabalho descritos na frente de trabalho por comparação aos ainda elevados números ocorrentes na lavoura de cana-de-açúcar brasileira. "Ou seja, a ausência de concessão adequada de Equipamentos de Proteção Individual – EPI – no caso concreto não pode ser mascarada pela prática generalizada na produção sucroalcooleira", disse.
Bastos transcreveu trecho do Roteiro de Atuação Contra Escravidão Contemporânea, elaboradora pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, em trabalho coordenado pela atual procuradora-geral da República, Raquel Dodge: "Assim, os casos de escravidão contemporânea estão, em regra, relacionados à miséria, à baixa instrução e à falta de oportunidade das vítimas, sendo os locais de exploração da mão de obra escrava diversos e distantes do local de origem dos trabalhadores, pois é justamente em razão da busca destes trabalhadores por melhores condições de vida que se dá a exploração pelo empregador e seus prepostos".
Em relação à desvinculação do diretor da usina do crime, o MPF entende que o pedido não deve ser atendido, uma vez que não se está diante de condenação por pura e simples ocupação de cargo de direção. De acordo com a procuradora, a sentença delimitou o notório conhecimento da operação da destilaria pelo diretor, que reconheceu em juízo as acomodações e condições oferecidas aos empregados. Há depoimento, inclusive, ligando o recorrente em questão às contratações.