O relatório preliminar sobre as causas do maior acidente da história da aviação civil brasileira, no dia 29 de setembro, omitiu uma informação importante: o vôo 1907 da Gol, na rota Manaus-Brasília, estava numa altitude diferente da habitual. O nível usual era de 41 mil pés (12,5 km), mas justamente naquele dia o Boeing ia em 37 mil.
Foi nessa altura que veio a se chocar em Mato Grosso com o Legacy, que saiu de São José dos Campos (SP) com autorização do controle aéreo para voar em 37 mil pés até o aeroporto Eduardo Gomes, de Manaus, apesar de a aerovia UZ6, entre essas cidades, prever níveis pares em sentido norte. O plano de vôo original do Legacy previa três altitudes. Nesse trecho, 36 mil e depois 38 mil.
Os pilotos do Boeing da Gol procediam corretamente, porque o “vôo autorizado” pelo Cindacta-4 (centro de controle de tráfego aéreo de Manaus) era para 37 mil pés. Não foi divulgado, até agora, qual era o plano original e se previa 37 mil, como foi o vôo de fato, ou 41 mil pés, como era habitual.
A revelação acrescenta uma grave dúvida: os controles de São José, Brasília e Manaus não “conversaram” e por isso, sem saber que a altitude do Boeing não seria habitual, São José autorizou 37 mil até Manaus?
Curiosamente, o relatório preliminar da comissão que investiga o acidente, anunciado na quinta-feira passada, dá o plano de vôo original do Legacy, com as três altitudes (37 mil, 36 mil e 38 mil pés), mas não faz referência ao plano de vôo do Boeing. Limita-se a dizer que ele manteve-se em 37 mil pés até se chocar com o jato.
Conforme a Folha apurou, a suposição da comissão é que o Cindacta-4 pode ter autorizado um nível diferente do costumeiro para o Boeing porque se tratava de uma sexta-feira, o vôo tinha 154 pessoas a bordo e pode ter tido também uma carga mais pesada do que o padrão normal do vôo 1907. Aviões muito pesados devem voar em altitudes mais baixas.
A revelação aumenta a perplexidade dos advogados Theo Dias, brasileiro, e Robert Torricella, americano, responsáveis pela defesa dos pilotos do Legacy, os americanos Joe Lepore e Jan Paladino. Segundo Dias, houve um choque entre dois aviões, mas apenas um está sendo de fato investigado –o Legacy. Todos os dados de vôo, de tentativas de contato entre o centro de controle e a aeronave e de falhas de equipamentos referem-se apenas a ele. Não há os mesmos dados em relação ao Boeing. Aliás, nem ao Boeing nem aos procedimentos adotados pelo Cindacta-4, que deu a “clearance” para a decolagem do avião da Gol.
Ainda conforme a Folha apurou, a comissão que investiga o caso, presidida pelo coronel Rufino Ferreira, suspeita que um dos maiores, senão o maior problema, pode ter sido uma pane do sistema do jato, que era novo e fazia o primeiro vôo aos EUA, com parada técnica em Manaus. Três fatores reforçam a suspeita:
Houve 27 tentativas de contato entre o Cindacta-1, de Brasília, e o Legacy, sem sucesso. Como outras aeronaves conseguiram contato no mesmo dia, pode ter havido, em vez de um “buraco negro” –que costuma ser passageiro–, uma falha dos equipamentos de rádio da aeronave.
O transponder também falhou. Trata-se do instrumento que envia os dados do avião para o centro de controle e aciona, se necessário, o TCAS (sistema anti-colisão). Os pilotos já deram depoimentos oficiais garantindo que não desligaram o equipamento.
O transponder voltou a funcionar em torno de três minutos depois do choque, já com o código de emergência, que é 7700. Como se tivesse sofrido um mau contato e, com o impacto, tivesse recuperado o funcionamento. A Aeronáutica trabalhou desde o início com a hipótese de “mau contato”.
Apesar disso, não estão descartadas várias outras dúvidas, em relação ao nível de vôo do Legacy, que estava a 37 mil pés numa aerovia que exige níveis pares, em relação à eventual imperícia dos controladores de vôo e à existência de um “buraco negro” na Amazônia, comprometendo tanto os contatos por radar quanto por rádio.
Para a Aeronáutica, “buraco negro” é uma ocorrência eletromagnética que ocorre em vários pontos do mundo, e isso não prejudica a “excelente qualidade” de condições técnicas do espaço aéreo brasileiro. Além disso, “buracos negros” persistem por poucos minutos, não por tanto tempo a ponto de inviabilizar 27 tentativas de contato por rádio.
O novo dado das investigações, dando conta de que o Boeing estava numa altitude não habitual, não resolve nenhuma das questões, mas confere ainda maior complexidade às investigações de um acidente considerado “praticamente impossível” por experts e por autoridades aeronáuticas. Choques no ar são raríssimos.
Outro lado
O chefe do Cindacta-4, coronel Eduardo Carcavallo, disse ontem não ter informações sobre o nível habitual do vôo 1907 da Gol. “Não conheço o histórico do vôo em outros dias”. A reportagem tentou falar com a Gol, mas não conseguiu.