Depois de 19 anos, três acusados pelo assassinato do missionário jesuíta Vicente Cañas Costa vão a julgamento nesta semana. O crime ocorreu em abril de 1987 em Juína, a 737 quilômetros de Cuiabá, e expôs as tensões fundiárias no oeste do estado, principalmente a luta do missionário pelas terras dos integrantes da etnia Enawenê-Nawê, um grupo quase isolado do contato com não-índios e que ainda não tinha área demarcada ou homologada. Os fazendeiros pressionavam contra a medida.
O júri popular dos três réus que ainda podem ir a julgamento está marcado para terça-feira (24), às 8 horas (horário local), no auditório da Justiça Federal de Cuiabá. De um lado, estarão Ronaldo Antônio Osmar, delegado de Juína na época do crime e acusado de intermediar a morte, e os pistoleiros José Vicente da Silva e Martinez Abadio da Silva. De outro, o Ministério Público Federal, que os denunciou por homicídio duplamente qualificado, crime cuja pena varia de 12 a 30 anos de prisão.
Por causa da demora no processo, alguns acusados se livraram de ser julgados. Dois fazendeiros denunciados como mandantes pelo Ministério Público, Pedro Chiquetti e Camilo Carlos Obici, morreram. O quarto mandante acusado, o fazendeiro Antonio Mascarenhas Junqueira, não pode mais ir ao tribunal porque tem mais de 70 anos e a ação contra ele já prescreveu.
O julgamento atrai a atenção de entidades indigenistas e de defesa dos direitos humanos, que prometem exigir justiça. Advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e assistente da acusação, Paulo Machado Guimarães estima que o júri deva terminar na quarta(25) ou na quinta-feira.
A defesa alega falta de evidências e de testemunhas oculares, mas Guimarães diz estar otimista. “A sociedade espera que o júri perceba a dimensão das acusações”, ressalta. Por causa do isolamento do local do crime, o corpo do missionário só foi encontrado 40 dias depois da morte, com o abdômen perfurado e em avançado estado de decomposição.
A partir daí, uma sucessão de demoras contribuiu para adiar o julgamento. Somente o inquérito policial tramitou por seis anos. Além disso, segundo o Cimi, o medo de represálias fez a população de Juína calar-se. O envolvimento dos acusados só foi revelado por índios das terras vizinhas às dos Enawenê-Nawê, onde ocorreu o assassinato. “A falta de autoria identificada retardou bastante as investigações”, explica Guimarães.
Como o missionário ajudava na demarcação da reserva dos Enawenê-Nawê, próximo à divisa com Rondônia, o processo passou para a competência da Justiça Federal. “A disputa sobre o fórum que julgaria o caso foi longa, mas já estava sacramentada porque o missionário estava oficialmente a serviço da Funai [Fundação Nacional do Índio]”, esclarece Guimarães.
Quando foi assassinado, Vicente Cañas voltava de uma reunião na Funai em Brasília, certo de que a demarcação de uma reserva para os Enawenê-Nawê sairia logo. A morte só foi descoberta porque a ausência de contatos por rádio chamou a atenção dos companheiros de missão. O jesuíta conviveu com os índios por mais de dez anos, tendo participado do primeiro contato da etnia com homens não-índios, em 1974.
Apesar da espera de quase 20 anos e do fato de acusados terem escapado da condenação, o advogado do Cimi salienta a importância do júri. “O julgamento tem grande significado não só para a questão indígena, mas para a cidadania”, avalia Guimarães. “Essa é uma oportunidade fundamental para não deixar a impunidade prevalecer no Mato Grosso”.