Por violação dos princípios da legalidade, finalidade e moralidade, é nulo o contrato administrativo que, sob o pretexto de educar os cidadãos para o trânsito, prioriza o lucro de empresa privada e o aumento da arrecadação do município, em detrimento do interesse público da coletividade. Esse é o posicionamento da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, que manteve decisão de primeira instância declarando a nulidade do contrato para prestação de serviços de gerenciamento de trânsito celebrado entre a Engebrás – Indústria, Comércio e Tecnologia de Informática e a prefeitura de Várzea Grande.
Com a decisão do TJMT, fica mantida a nulidade de todos os autos de infrações de trânsito, elaborados por meio dos dispositivos eletrônicos de monitoramento instalados e operados pela Engebrás em Várzea Grande. A empresa deve também fazer a repetição individualizada de todos os valores eventualmente pagos pelas pessoas que foram multadas, desde que o auto de infração tenha por origem algum dos equipamentos eletrônicos operados pela Engebrás. De acordo com a decisão em segundo grau, o Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso (Detran) deve ainda excluir todos os registros de pontuação nas Carteiras Nacionais de Habilitação de cada um dos supostos infratores, que foram autuados pelos dispositivos eletrônicos instalados pela empresa.
No recurso, a Engebrás pediu, sem êxito, que o pedido listado na ação popular fosse julgado totalmente improcedente. Alternativamente, solicitou a reforma parcial da sentença para que não fosse condenada na repetição dos valores pagos aos multados. Na hipótese de ser mantida a sentença, pediu que a repetição se limitasse aos valores recebidos pela Engebrás, descontados os custos comprovadamente incorridos com a prestação dos serviços.
Segundo o relator do recurso, desembargador Juracy Persiani, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deixa claro ser legal a utilização de aparelhos eletrônicos para comprovar a ocorrência de infração de trânsito. Contudo, no contrato realizado pela prefeitura de Várzea Grande e a Engebrás, deve ser considerada ilegal a cláusula sobre a vinculação da remuneração dos serviços ao número de autos de infração registrados. A cláusula terceira do contrato dispõe que ‘o valor global do presente contrato é estimado em R$ 600 mil, considerado o valor de R$ 24,86 para cada infração válida’.
De acordo com o relator, a ilegalidade do objeto é evidente e fere não só as normais legais, mas os princípios fundamentais da administração pública, contidos no art. 37 da Constituição Federal. A apelante também não demonstrou a “legalidade das cláusulas que prevêem a inusitada forma de remuneração, ou seja, em qual dispositivo legal ou regulamentar ela se apoiou. (…) Logo, tem-se a ilegalidade do conteúdo das cláusulas que prevêem a vinculação da remuneração da empresa ao número de autos de infração registrados”, completou o magistrado.
Em seu voto, o desembargador Juracy Persiani assinalou que é claro que a forma de remuneração prevista no contrato favorecia deliberadamente a empresa e o município, que obteriam lucros e receitas cada vez maiores à medida que os donos e usuários de veículos passassem a pagar pelo inusitado e contínuo ‘método pedagógico’ adotado para educá-los.
Ele ressaltou que o cidadão foi o lesado nessa relação ‘caça-níquel” e não pode ser diretamente responsabilizado quando a administração pública desvia-se de sua finalidade e firma contrato administrativo nulo com empresa privada, “como a em que os infratores pagam multas obtidas e cobradas com base no contrato nulo e experimentam um empobrecimento ilegal e injusto”.