A insegurança jurídica em 38 milhões de hectares de áreas devolutas do Estado ou da União, ou seja, terras públicas, mas que estão griladas em sua maioria, é um dos motivos da violência no campo em Mato Grosso. A situação é grave e crônica e só chama atenção de fato quando acontece um massacre como o de Colniza, que repercutiu internacionalmente.
O território mato-grossense tem 90 milhões de hectares. Sendo assim, as áreas devolutas representam 42% desse total. Além dessas, são disputadas também reservas ambientais, indígenas e quilombolas. Para fechar o mapa agrário do Estado, há ainda as propriedades privadas e na documentação de boa parte delas também encontra-se uma diversidade de distorções.
Tais conflitos não ocorrem no apagar das luzes e nem longe do conhecimento dos poderes, dos órgãos do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia. Não era de madrugada ou à noite quando os posseiros Fábio, Izaul, Ezequias, Samuel, Francisco, Valmir, Aldo, Sebastião e Edson foram torturados e executados. Por volta das 16 horas do dia 19 de abril deste ano, eles protagonizaram mais um capítulo dos violentos conflitos no campo de Mato Grosso, onde a disputa de terras ainda se resolve na ponta da faca ou à bala, com influência de fazendeiros e políticos, e cenário de irregularidade fundiária.
É mais grave a situação no extremo Norte do Estado, justamente onde fica Colniza, local da chacina, em região amazônica (1.065 Km a Noroeste de Cuiabá). Estas disputas estão mais tensas desde o final da década de 90 e início dos anos 2000, época da migração sulista, quando o valor da terra em território mato-grossense foi aumentando até valer peso de ouro, até porque ao redor das fazendas começaram a surgir benfeitorias públicas, como unidades de saúde, escolas e estradas.
A situação de conflitos poderia ser outra se o mapa agrário estadual não fosse uma grande incógnita. Ninguém sabe informar com precisão quantos títulos de terra são válidos e estão regulares. Nem o Instituto de Terras (Intermat), nem o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), nem as organizações sociais que combatem o latifúndio. O que todos confirmam é que a situação se agrava por conta das áreas devolutas. São elas que favorecem esse clima de “terra de ninguém”.
A assessoria jurídica da Comissão Pastoral da Terra (CPT) defende que a União e o Estado deveriam retomar essas áreas e promover a reforma agrária ou criar reservas ambientais ou usá-las em prol da população mato-grossense. No entanto, quando a Advocacia Geral da União (AGU) e o Intermat acionam grileiros no Judiciário, enfrentam ações demoradas. A pastoral diz ainda que essa lentidão só interessa aos grileiros e que eles são “tubarões grandes”.
Quanto às distorções identificadas pela CPT e que favorecem conflitos violentos, além da grilagem de terras devolutas, tem ainda a sobreposição de títulos. Um exemplo disso pode ser verificado na gleba Nhandu, no município de Novo Mundo (785 km ao norte de Cuiabá), onde a AGU acionou 17 grileiros que usufruem, sem ter direito, de 14.600 hectares na Fazenda Araúna, dentro da gleba.
Outro exemplo é uma área na região do Araguaia explorada por um suposto proprietário e reivindicada por outros 15, que também se dizem donos. Um dos motivos de interesse em ter título de terra, ainda que falso, diz a CPT, é para pleitear financiamento em banco com documento “frio”.
A CPT cita ainda uma outra distorção no mapa agrário. O Intermat estaria expedindo títulos de terras para favorecer a terceiros, excedendo o limite autorizado, sendo assim, para avançar esses limites, aceitaria “laranjas” como proprietários. Mãe, filho, outros parentes e até peões de confiança viram, da noite para o dia, donos de terras, mesmo sem serem de fato.
O advogado Irajá Rezende de Lacerda, da Comissão de Direito Agrário da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso (OAB-MT), explica que o problema fundiário no Brasil se arrasta desde os anos de 1500, quando a coroa portuguesa admitiu os regimes de capitanias hereditárias e depois sesmarias, que eram modelos utilizados em Portugal.
“O Brasil foi sendo colonizado sem qualquer plano, de forma extremamente desordenada”, ressalta. Tanto é que entre 1822 até 1850, ficou sem qualquer diploma legal e foi regido durante todo esse tempo pelo regime de posses.
Com toda essa desordem de quase 30 anos sem lei, surgiu a necessidade de organizar o quadro imobiliário do país e foi então que surgiu a primeira lei de terras, a Lei 601 de 1850, como detalha o advogado. Só em 1964, entra em vigor o Estatuto da Terra, determinando a função social da terra. Foi então que voltaram à União a propriedade de áreas que não cumpriam este requisito.
A partir do Estatuto, a união vem criando leis esparsas e pontuais para resolver problemas sem qualquer planejamento. “É importante frisar que a regularização fundiária nunca foi tratada como prioridade pelos governos, nem na época do império e tampouco na democracia”, critica o advogado. Para ele, enquanto o mapa agrário não deixar de ser este terreno de irregularidades, não haverá paz no campo e chacinas como a de Colniza podem se repetir.
Em janeiro do ano passado, o governo de Mato Grosso, protocolou junto ao Fundo da Amazônia, do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o projeto Terra a Limpo, que previa R$ 71 milhões para a regularização fundiária das terras públicas e assentamentos de reforma agrária no Estado. Em fevereiro e abril deste ano, reuniões foram realizadas com representantes do BNDES, no Rio de Janeiro e em Mato Grosso, para avançar na liberação dos recursos.