A realização de uma cerimônia na Terra Indígena Marãiwatsédé com a presença do primeiro escalão do Poder Executivo Federal e Estadual para que seja feito um pedido público de desculpas ao Povo Xavante pelas graves violações de direito perpetradas contra a etnia durante a ditadura militar, além do pagamento de uma indenização no valor de R$ 129,8 milhões para a comunidade indígena, tendo em vista os danos morais e materiais decorrentes do período de 48 anos em que membros da etnia Xavante ficaram afastados de suas terras, são apenas dois dos pedidos feitos pelo Ministério Público Federal (MPF) em uma ação civil pública movida contra a União, o Estado de Mato Grosso, a Funai e 13 herdeiros das terras da fazenda Suiá-Missu.
No texto da ação, que possui 81 páginas, o MPF faz uma contextualização histórica, em detalhes, de como se deu a remoção forçada da comunidade Xavante da Terra Indígena Marãiwatsédé, território tradicional, em meados de agosto de 1966, relatando a submissão da comunidade indígena a regime de trabalho análogo à escravidão, ao serem utilizados como mão-de-obra na Fazenda Suiá-Missu.
Apesar de o governo de Mato Grosso ter cedido à União, em março de 1950, terras para demarcação do território Xavante, dando um prazo de dois anos para que o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – órgão que antecedeu a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) – demarcasse a área, o próprio Estado, em seguida, alienou-as para terceiros. A área foi adquirida por Ariosto da Riva que mais tarde se associou com a família Ometto para instalar na região a Agropecuária Suiá-Missu. Os primeiros contatos diretos com os indígenas ocorreram através do trabalho de abertura das picadas demarcatórias. Os indígenas tentavam resistir à invasão, mas o uso de armas de fogo tornou tais tentativas de defesa inócuas, causando a morte de inúmeros membros da comunidade.
Diante das violências a que o grupo indígena encontrava-se exposto, partiram para a aliança com o “inimigo”, cedendo à proposta de Ariosto de fundar uma nova aldeia perto da sede da fazenda, onde trabalharam na derrubada da vegetação nativa para formação de pistas de pouso de avião, de roças e de pastos para a criação de gado, recebendo apenas comida pelo serviço, “o que pode ser caracterizado como um regime de trabalho análogo à escravidão”, conforme o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Todo processo, tanto de invasão e ocupação do território indígena quanto do uso forçado de sua mão de obra, foi permeado pela violência.
Depois de algum tempo, apesar de “pacificados”, os Xavante aldeados próximos a Suiá-Missu começaram a representar um incômodo aos proprietários da Fazenda, gerando atritos com os funcionários. Foi então que, pela primeira vez, os indígenas foram removidos de seu território, sendo levados para uma área de várzea, que permanecia inundada por oito meses ao longo do ano, impossibilitados de desenvolver as atividades produtivas necessárias à subsistência, sofrendo com a grande quantidade de mosquitos na região. A situação fez com que muitos nativos adoecessem e viessem a morrer ao longo dos três anos que permaneceram no local.
Foi então que, após esse período, houve a remoção do grupo dos Xavante da Marãiwatsédé para a Missão Salesiana de São Marcos, em 1966, “com consentimento e apoio de órgãos oficiais, especialmente o SPI e a Força Aérea Brasileira (FAB), que realizaram o transporte aéreo daquela população à Aldeia São Marcos, a centenas de quilômetros de distância do território originário”. A Aldeia São Marcos era local de outro sub-grupo Xavante.
Conforme consta na ação, os depoimentos dos sobreviventes da remoção forçada de Marãiwatsédé evidenciaram que, na ocasião, aquela comunidade foi tomada por um misto de surpresa e desilusão. Para coagir os indígenas a aderirem a transferência, as crianças foram levadas antes de seus pais, “conduta expressamente prevista como crime de genocídio, no artigo 1º, “e”, da lei 2.889/56”.
O MPF investigou, por meio de Parecer Técnico de natureza psicossocial, todas as circunstâncias da remoção que acabaram acarretando intensos sentimentos individuais e coletivos de dor, tristeza e desilusão. Um parecer técnico psicológico, elaborado durante a instrução do inquérito civil, consignou que o episódio da remoção forçada seguida da morte de dezenas de membros do grupo Xavante de Marãiwatséde configura um episódio desencadeador de traumatização psicossocial coletiva.
Ao todo, foram removidos para a Aldeia São Marcos 263 xavantes, sendo que um terço do grupo foi dizimado nas primeiras semanas após a remoção, em razão de uma epidemia de sarampo em curso na região. Sobreviventes relataram que não houve respeito às crenças, ritos e tradições da comunidade, pois foram utilizadas covas coletivas para o sepultamento das vítimas, amplificando ainda mais o sentimento de perda, desilusão e angústia. Oitenta e cinco pessoas oriundas de Marãiwatséde morreram semanas depois da chegada em São Marcos.
“A imagem dos corpos amontoados nos caminhões sem nenhum cuidado aparece com frequência. A preparação do corpo, o preparo da cova e o choro ritual, para depois haver o sepultamento, foram substituídos por um enterro coletivo, sem ter sido cumprido nenhuma tipo de ritual. E o preparo da cova, pensada em um espaço específico e preparada segundo a cultura Xavante, foi substituído por uma vala única, um 'buraco' feito em algum lugar, sem nenhum cuidado na escolha, do ponto de vista da ritualidade Xavante. O recolhimento dos corpos e seu enterro coletivo em vala comum são o ápice do processo da violência que desencadeou a traumatização nessa população”, relata o psicólogo Bruno Simões Gonçalves no Parecer Técnico Psicológico.
A morte repentina de grande número de membros da comunidade deu causa a um desarranjo social também no grupo receptor em São Marcos, que precisavam assimilar a dor de dezenas de mortos e ainda reintegrar em seu território um grupo xavante pouco conhecido.
Apesar da remoção forçada da maior parte do grupo, membros remanescentes permaneceram na área, enquanto o grupo removido empreendia esforços, desde o primeiro momento, de retorno à região de origem. Marãiwatsédé permaneceu como lugar de perambulação, coleta de sementes e frutos e culto ancestral. Mesmo assim, a tentativa de apagar a presença indígena é manifestada em inúmeras certidões emitidas pela FUNAI, atestando falsamente a inexistência de comunidades indígenas na área do empreendimento denominado Agropecuária Suiá-Missu.
A dispersão da comunidade de Marãiwatséde tornou-os extremamente vulneráveis, sujeitando-os à hostilização por parte de outros grupos Xavantes. Com isso, devido a graves desentendimentos ocorridos na Aldeia São Marcos, parte do grupo foi para Couto Magalhães. Em seguida, para o território de Areões e, por fim, seguiram para Pimentel Barbosa, onde ficaram até retomarem a posse de Marãiwatséde. “A luta ainda persiste, tendo em vista a parcela do território, já efetivamente identificado pela Funai, que ainda não lhes foi restituído, bem como a intensa conflituosidade que marca a relação da comunidade indígena com a comunidade envolvente, especialmente do município de Alto Boa Vista”, afirmam os procuradores na ação.
O objeto da Ação Civil Pública vai além do pedido de reparação material aos Xavantes, pois isso seria ignorar todo o sofrimento ao qual os indígenas de Marãiwatséde foram submetidos ao longo dos últimos 48 anos, e as dificuldades enfrentadas até os dias atuais.
Diante dos fatos, o MPF solicita o pedido público de desculpas por parte das autoridades públicas do país, a ser realizado em terra Xavante, para a reparação dos danos morais coletivos causados à comunidade indígena.
A recuperação da terra indígena também foi pedida pelo MPF na Ação Civil Pública. “É necessário ressaltar que tal pedido está intimamente ligado à manutenção das condições existenciais mínimas daquela comunidade, cujos costumes guardam íntima relação com a terra originária. Destarte, a degradação ecológica da área impede não apenas a reprodução cultural daquele povo, mas também a própria saúde e nutrição físicas, severamente impactadas pelo desmatamento em suas terras”, relata um trecho do texto da ação civil.
Para o MPF também é essencial que as entidades envolvidas na ação declarem formalmente a existência dos atos ilícitos cometidos contra os indígenas, neste caso a remoção forçada de cerca de 263 membros da comunidade Xavante de Marãiwatséde, seguida da morte de mais de 80 pessoas do grupo, com delcaração expressa sobre a caracterização de tais atos como crime de genocídio.
E por fim a reparação pecuniária dos danos causados à comunidade indígena, no valor de R$ 129.837.000,00. O valor arbitrado deve ser depositado em conta judicial e liberado segundo a apresentação de projetos tendentes ao benefício da comunidade afetada, independentemente da residência atual na Terra Indígena Marãiwatséde.