Mesmo com a perda do mandato a partir da próxima quinta-feira (1º), parlamentares indiciados pela Polícia Federal por envolvimento com a máfia das ambulâncias poderão continuar a usufruir do foro privilegiado na Justiça, ou seja, o direito de serem julgados apenas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A decisão está nas mãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que vai examinar, nos próximos dias, o pedido de retirada da competência da Justiça Federal de primeira instância para julgar os processos contra os acusados de envolvimento com o esquema dos sanguessugas.
O recurso foi apresentado pelo advogado Eduardo Mahon, que já foi defensor da família Vedoin e atualmente defende ex-prefeitos de Mato Grosso envolvidos com o escândalo. Caso o STJ aceite pedido do advogado, todos os 118 inquéritos abertos pela Polícia Federal terão de ser remetidos para o STF, criando novos obstáculos para a punição dos envolvidos.
Atualmente, 84 parlamentares estão sob investigação no Supremo acusados de terem recebido propina para facilitar a destinação de recursos públicos para a compra superfaturada de ambulâncias. Desses, 70 perderão o foro privilegiado porque não conseguiram renovar o mandato.
Em 16 casos, até agora, a Polícia Federal já encontrou elementos suficientes para fazer o indiciamento. Entre eles, alguns que chegaram ser absolvidos pelo Conselho de Ética, como os deputados João Correia (PMDB-AC) e Celcita Pinheiro (PFL-MT) e o senador Ney Suassuna (PMDB-PB).
Além deles, novos parlamentares devem ser indiciados assim como prefeitos e dezenas de assessores e membros de comissões de licitação das prefeituras. A Polícia Federal deve apresentar, ainda nesta semana, relatório sobre os inquéritos que vão terminar em indiciamentos relacionados ao caso das sanguessugas.
No habeas-corpus impetrado no STJ, o advogado Eduardo Mahon pede que seja restabelecida uma decisão anterior do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Em maio do ano passado, quando a PF deflagrou a Operação Sanguessuga, o TRF-1 declarou-se incompetente para analisar o caso por causa da presença de parlamentares entre os acusados, passando a responsabilidade para o STF. A decisão do STF implicou, de imediato, na liberação dos quase 50 presos pela operação.
Contudo, no dia seguinte, após reclamação da Procuradoria da República, o Supremo suspendeu a decisão do TRF-1 em forma liminar, fazendo com que os beneficiados com a liberdade retornassem à prisão.
A reclamação da Procuradoria, porém, não teve seguimento no Supremo. Ela acabou arquivada por seu relator, o ministro Gilmar Mendes. Com isso, sustenta o advogado, a liminar deixou de ter efeito, voltando a valer a antiga decisão do TRF-1.
A defesa aguardou o fim do prazo dos recursos que poderiam reativar a liminar para pedir ao STJ que seja restabelecida a antiga decisão do TRF-1. “Após a liminar cassada e o processo (reclamação da Procuradoria) arquivado, o que passa a valer é a decisão anterior, que tira competência da Justiça de primeira instância”, argumenta o advogado.
Ainda não se tem o balanço de quantos deputados e prefeitos serão indiciados, mas fontes da PF adiantaram ao Congresso em Foco que novos nomes aparecerão. Com a conclusão do material pela Polícia, caberá ao Ministério Público enviar denúncias à Justiça para que os processos sejam abertos contra os envolvidos.
O material está sendo produzido pelos 15 delegados que compõem uma força-tarefa criada para executar os 118 inquéritos que investigam parlamentares, prefeituras, comissões de licitações e assessores envolvidos com esquema irregular de venda de ambulâncias.
Juntamente com os prefeitos e deputados que ainda detêm mandato, os assessores e membros das comissões de licitação que foram denunciados na máfia das ambulâncias, mesmo não usufruindo do foro privilegiado, acabarão tendo o benefício na prática caso o STJ aceite o recurso. Isso porque as denúncias encaminhadas à Justiça serão feitas num só pacote.
“É mais lógico que sejam todos processados juntos, pois há unidade de ação na prática do delito”, diz o procurador da República em Mato Grosso, Mário Lúcio Avelar. “Os prefeitos [ou deputados com mandato] acabam atraindo os outros [envolvidos] para o mesmo fórum que serão julgados”, completou.
Apesar de se mostrar otimista quanto à punição dos envolvidos, o procurador não apresenta o mesmo tom quanto à celeridade dos processos. “A Justiça é lenta”, lamentou. Em suas contas os processos podem levar até sete anos para serem concluídos. “Mas são crimes de reclusão [prisão], deve haver a prisão dos envolvidos”, citou.
Como mostrou o Congresso em Foco no último dia 12, desprovidos das benesses inerentes ao cargo, 90 deputados e cinco senadores que ficarão sem mandato esta semana terão de resolver suas pendências judiciais na condição de cidadãos comuns.
Em tese, o foro privilegiado serve para garantir o exercício democrático das prerrogativas inerentes à função parlamentar e evitar que deputados e senadores sejam investigados ou julgados à luz das disputas políticas locais. Os seus defensores lembram que ele reduz as chances de se reverter uma decisão desfavorável, já que contra as decisões do Supremo, instância máxima do Judiciário, não há recurso.
Mas, na prática, advertem juristas, a prerrogativa tem se revelado uma ponte para a impunidade dos maus políticos. Até hoje, nenhum parlamentar foi condenado pela mais alta corte do país. A maioria dos casos sequer chega a ser concluída pelos ministros, devido ao elevado número de processos que cada um deles tem para julgar.
Para se ter uma idéia da sobrecarga, cerca de 10 mil processos foram despejados por mês nas mãos de cada um dos 11 ministros do STF no ano passado, pouco mais do que em 2005. Naquele ano, cada gabinete recebeu mensalmente algo em torno de 9 mil processos.
Na opinião de um dos coordenadores nacionais do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), juiz Marlon Reis, há uma espécie de inversão no processo jurídico brasileiro. Para ele, o foro privilegiado deveria ser algo ruim para que acusados se defendessem, pois as instâncias para recursos, nesses casos, são reduzidas. “Se os tribunais fossem mais rápidos, o foro seria uma desvantagem, pois numa derrota caberiam menos recursos”, disse.
Mas não é isso que se vê no dia-a-dia dos políticos envolvidos com rolos judiciais, observa: “Quando se quer leniência a busca é pelo foro privilegiado. Os tribunais parecem ser mais complacentes que a Justiça de primeiro grau”.
A possibilidade de manutenção do foro privilegiado até para ex-parlamentares e assessores envolvidos com o esquema dos sanguessugas não é a única novidade do caso. Uma das duas denúncias feitas pelo Ministério Público que acarretaram na Operação Sanguessuga foi arquivada em definitivo pelo Tribunal Regional Federal 1ª Região.
A decisão afeta diretamente a família Vedoin, que respondia pelos crimes de fraude em licitações, formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva e falsidade ideológica no processo.
A defesa dos envolvidos com a máfia das ambulâncias – que consistia na compra superfaturadas de unidades móveis de saúde por prefeituras graças a emendas parlamentares apresentadas ao orçamento da União – alegou que os acusados respondiam pelos mesmos crimes nas duas ações penais.
O processo que foi trancado se referia especificamente a crimes praticados no município de Nova Bandeirante (MT). O que continua em tramitação trata de forma mais genérica os delitos, usando o termo “crime de fraude a licitação em vários estados”.
Entre os beneficiados com o trancamento estão os proprietários da empresa Planam, Darci e Luiz Antônio Vedoin. Além deles a decisão se estende a Cléia Maria Trevisan Vedoin, Alessandra Trevisan Vedoin e Ivo Marcelo Spinola Rosa.